Grande parte dos materiais divulgados sobre o autismo na mídia brasileira vem carregado de conceitos generalistas que não fazem parte da realidade de indivíduos com TEA (Transtorno o Espectro Autista). Inúmeros mitos que são transmitidos pela sociedade e “achismos” em torno do comportamento de pessoas com autismo só reforçam estereótipos e preconceitos que dificultam ainda mais o processo de inclusão.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que há 70 milhões de pessoas com autismo em todo o mundo, sendo 2 milhões somente no Brasil. De acordo com o CDC (Centro de Controle de Doenças e Prevenção do governo dos EUA), estima-se que uma em cada 59 crianças apresenta traços de autismo. Como um número expressivo como esse poderia enquadrar tantos autistas dentro de características iguais de comportamentos, sem diferenciação? Quando falamos de autismo, falamos de um transtorno do neurodesenvolvimento que faz parte de um espectro, ou seja, que vão existir inúmeros indivíduos com características diferentes entre si, que necessitam de muito ou pouco suporte. Indivíduos que são seres únicos, e que devem ser tratados como tal, assim como qualquer ser humano
No Dia do Orgulho autista, especialistas da área, ativistas e mães de pessoas com TEA ganham voz para falar sobre o espectro e desmistificar situações que reforçam ainda mais o preconceito. A data, comemorada em 18 de Junho, é marcada para relembrar e celebrar as características únicas e a neurodiversidade de pessoas com o transtorno. O que a causa autista necessita é de empatia e acolhimento, através da disseminação de informações verdadeiras, contribuindo para fazer a diferença na inclusão social das pessoas autistas.
Mitos e verdades sobre o autismo
Quantas pessoas já não ouviram falar que autismo é causado pela falta de afeto, provocado por vacina, algum tipo de alimento, que é uma doença, enfim, informações errôneas, sem embasamento científico, que são disseminadas e contribuem ainda mais com conceitos não verdadeiros em relação ao TEA.
A especialista Julia Sargi, Psicóloga e Analista do Comportamento – Supervisora ABA do Grupo Conduzir, comenta que o Dia do Orgulho Autista vem como uma oportunidade para conscientizar a sociedade sobre o espectro e avançar na luta contra os preconceitos:
“O nosso papel como especialista neste dia é desmistificar e mudar a visão negativa em relação ao transtorno. Dessa forma, é esclarecido que o TEA não é uma doença (e isso já deixa claro que se a pessoa não é doente, não é necessária a busca e não existe possibilidade de cura), mas sim, uma condição de “diferença”, em que pessoas que estão dentro do espectro possuem algumas características próprias que lhe trazem desafios. Com isso, o objetivo sempre será de incluir e integrar essas pessoas à sociedade, considerando e respeitando suas diferenças e necessidades. Além disso, essa data é muito importante também para apoiar as famílias das pessoas com TEA, já que estão em constante luta pelo reconhecimento e cumprimento dos direitos que vêm sendo arduamente adquiridos, ampliando o conhecimento acerca do assunto entre as famílias, profissionais e a comunidade.”
E quando falamos sobre autismo, surgem também algumas afirmações comuns e errôneas de que os autistas são muito inteligentes, superdotados, bons com números, aprendem diversas línguas, entre outros mitos.
A especialista Julia Sargi, Psicóloga e Analista do Comportamento – Supervisora ABA do Grupo Conduzir diz que é importante enfatizar que o transtorno do espectro autista evidencia algumas características comuns, mas que cada indivíduo é único e apresenta suas próprias habilidades e dificuldades:
“Alguns indivíduos têm, sim, uma habilidade incrível para algo em específico, e muitas vezes isso pode se dar devido ao hiperfoco, ou seja, o interesse restrito por determinado assunto. Mas uma grande porcentagem das pessoas que se encontram no espectro apresenta déficits cognitivos significativos, que dificultam a aquisição de novos repertórios. Uma outra expressão, considerada mito, e que é muito comum de ouvir, é de que o autista “vive no seu próprio mundo”, e que não gosta de estar com outras pessoas. A verdade é que a dificuldade na interação social é uma característica significativa muito comum aos indivíduos com autismo, mas isso não significa que eles não queiram se relacionar com outras pessoas, e sim que apresentam dificuldades em iniciar ou manter a interação, entender algumas regras sociais, entre outras habilidades que são extremamente importantes nas relações. E mais uma vez, precisamos olhar individualmente para cada um e entender qual a dificuldade e qual a motivação para se relacionar com os outros. Lembrando que isso representa uma parte do todo quando tratamos do espectro”
Josiane Mariano tem 36 anos, é mãe do Heitor, de 10 anos – diagnosticado com autismo aos 2 anos. Ela conta que já ouviu diversos absurdos ligados às causas do autismo e opiniões de pessoas em relação ao comportamento do filho:
A mãe Josiane com o filho Heitor, de 10 anos
“Já ouvimos de tudo, desde que era falta de estímulo e que se nós pais conversássemos mais com ele, ele se desenvolveria, inclusive opiniões como essas vindas até de médicos. Até mesmo alguns religiosos dizendo que ele ‘veio assim’ para pagar pelos pecados de outras vidas, assim como todos os deficientes desse mundo. Ou ainda frases de que ele são praticamente gênios, o que não é nem de longe verdade, no nosso caso. Conto até que meu filho aprendeu a ler muito cedo, com apenas três anos de idade, sozinho, sem nenhum estímulo, inclusive em inglês, mas ao mesmo tempo, aos seis anos ainda usava fraldas. A conta não fecha, entende? Cada família, cada filho é de um jeito”
No Transtorno do Espectro Autista todos os indivíduos têm potencial para aprender e desenvolver novos repertórios, e, para isso, basta saber a forma correta de ensiná-los. Ao serem observadas as variações/características dessas pessoas, algumas podem até ser interpretadas como vantagens competitivas e potencialidades. Há alguns indivíduos com TEA que possuem uma condição diferente (e rara) conhecida como ‘savantismo’ ou Síndrome de Savant, que é uma ‘grande capacidade intelectual’, entendida como genialidade, assim como conta a Psicóloga e Analista do Comportamento do Grupo Conduzir:
“Os ‘savants’, apesar de apresentarem uma inteligência acima da média e talentos notáveis em alguns aspectos, como por exemplo: realizar cálculos extremamente complexos ou registrar/memorizar centenas de livros, podem também apresentar dificuldades e limitações em outros, como dificuldades nos repertórios sociais ou de independência. Portanto, diante de tantas diferenças, vale ressaltar que a inteligência acima da média não é uma regra, e que o Dia do Orgulho Autista quer esclarecer justamente que o mais importante, de fato, é considerar as condições e particularidades de cada indivíduo, entendendo seus déficits e potencialidades, não para que o indivíduo com TEA deixe de ter características do transtorno ou para que se torne um gênio, e sim para ajudá-lo a ter uma melhor qualidade de vida, bem-estar e poder ser compreendido e amado da forma como ele é.”
A mãe Josiane Mariano relembra que o dia a dia com o filho é vivenciado de “pequenos orgulhos”, e isso torna a caminhada cheia de superações e vitórias:
“Todos os dias quando avançamos um passinho rumo a uma qualidade de vida melhor, quando ele aceita experimentar algo novo, quando se sente à vontade em locais que antes talvez despertasse uma agitação maior, quando responde a uma interação social de forma adequada, por exemplo, temos um grande sentimento de vitória. Meu filho, assim como qualquer filho para uma mãe, me enche de orgulho. E eu só conheço ele dentro do espectro autista, não existe um Heitor dissociado disso, ele é assim e está tudo bem.”
Capacitismo, ativismo e autismo
O termo “capacitismo” tem sido disseminado e utilizado nos meios de comunicação, assim como nas redes sociais, para falar sobre a discriminação e preconceito social em relação às pessoas com deficiência. Em sociedades capacitistas, a ausência de qualquer deficiência é visto como “o normal”, e pessoas com alguma deficiência são entendidas como exceções; a deficiência é vista como algo a ser superado ou corrigido, se possível por intervenção médica.
Polyana Sá tem 20 anos, é estudante de engenharia de bioprocessos e biotecnologia na UFPR (Universidade Federal do Paraná), ela é autista e foi diagnosticada aos 16 anos. Polyana faz acompanhamento psicológico desde os 12 anos, antes mesmo do diagnóstico. Ela conta que é ativista da causa autista e utiliza as redes sociais para desmistificar informações errôneas sobre o TEA e disseminar informações para a sociedade, o que tem ajudado muitas pessoas que são diagnosticadas a lidarem com o transtorno:
“As pessoas tendem a fazer generalização do que é o autismo, a partir dos estereótipos, dos que são divulgados e propagados, no caso: autista homem, branco, que ou exige uma grande necessidade de apoio substancial ou se enquadra no quesito de altas habilidades. E toda vez que você tem uma pessoa que sai dessa linha e não segue a conformação dessa ‘caixinha’ que nos é criada, então, a sociedade dá uma travada, para e pensa: mas essa pessoa é autista mesmo? Nesse questionamento, em vez das pessoas procurarem se informar mais a respeito do TEA, e saber que existem vários indivíduos autistas, de todas as formas, jeitos e maneiras que você possa imaginar, as pessoas continuam propagando mitos e absurdos que ouviram para as outras pessoas. É justamente assim que o capacitismo se constrói, aumenta e ganha dimensões que são fora do normal. Coisas simples e comportamentos que podem ser desfeitos pela informação. Basta a pessoa querer se informar. Por isso, procuro estudar sobre, me conhecer mais e divulgar para as pessoas.”
Polyana Sá – autista e ativista
Polyana é amparada por lei como uma pessoa com deficiência e sempre busca ir atrás dos seus direitos. Na Universidade onde estuda, possui um aluno tutor. É também palestrante e fala sobre a interseccionalidade de raças:
“Todas as vezes que faço palestra, eu gosto de dizer que as pessoas pretas com deficiência e que buscam ter voz na sociedade são pessoas que não se submetem ao sistema. Porque todos os dias existe uma estrutura social que faz com que pessoas como nós não queiram existir ou sintam vergonha disso. Então, quando você tem uma pessoa que é mulher, preta, com deficiência, empoderada, e que fala sobre o assunto, é uma vitória, é você ir justamente ao contrário do que te ensinam desde que você nasceu. E dizer às pessoas que mulheres, autistas, pretas existem, e que somos várias, mas que muitas vezes não somos notadas. Nós, autistas, temos muitas caras, jeitos, formas e você vai encontrar autistas de muitas maneiras e que continuam sendo assim. Então, muito complicado lidar com a questão do capacitismo, tanto em pessoas que se encontram com grande necessidade de apoio substancial e tanto em pessoas com pouca necessidade de apoio substancial (como é o meu caso), mas todos estamos ali, no mesmo espectro.”
Autismo tem cura?
Muito tem se disseminado sobre a “cura do autismo”, reforçando o mito de que se trata de uma doença. Sem contar que é possível encontrar profissionais vendendo “fórmulas mágicas” e soluções para cessar ou diminuir o transtorno. Mas já se sabe que isso não existe. São falsas informações que devem ser desmentidas e rebatidas por toda a sociedade, meios de comunicação e especialistas da área. O que se tem são intervenções que ajudam a desenvolver e/ou aprimorar repertórios importantes que vão auxiliar os indivíduos no espectro a terem melhores condições para interações sociais e habilidades para atingir o máximo de independência possível e qualidade de vida.
“Não existem estudos que comprovam a cura do diagnóstico por meio de qualquer tratamento, e qualquer afirmação diferente a essa pode gerar confusão e expectativas frustradas aos pacientes e seus responsáveis. Porém, a Análise do Comportamento Aplicada (ABA) é uma intervenção que maximiza o potencial do indivíduo, através da ampliação de habilidades e redução de possíveis barreiras comportamentais que podem dificultar o aprendizado, tendo em vista que, a partir da avaliação, é possível mapear e respeitar a singularidade de cada um”, explica Julia Sargi.
Orgulho Autista
A ativista Polyana Sá comenta que no Dia do Orgulho Autista enxerga muitos desafios pela frente em relação à inclusão e à luta pelos direitos dos autistas, mas entende e acredita que aos poucos a sociedade tem caminhado no sentido pela busca da informação real e empatia em relação à causa autista:
“Este dia é para mim um dos dias mais importantes do ano, dia em que temos para bater no peito e dizer: eu sou autista, e sociedade, vocês precisam entender e conviver com isso, porque eu não vou mudar, eu não preciso mudar, eu não preciso ser diferente. E eu acho muito bonito essa expressão de autoamor, de reconhecer os semelhantes e dar apoio para as outras pessoas que estão em processo de diagnóstico, para os familiares que têm toda a trajetória com os filhos. Uma data muito importante e especial que precisa de visibilidade e muito engajamento. Dentro do movimento, falo por mim, é dia de festa e celebrar que se você é autista, não existe nada de errado com isso.”
Polyana Sá tocando ukulele – um dos hobbies preferidos
A mãe Josiane Mariano finaliza:
“A chave ainda é a informação, é necessário que conheçam melhor sobre algo que é tão complexo como o espetro todo, de que os autistas são diferentes, não são uma ‘receita de bolo’, de que não fazem tratamentos para se ‘curarem’ (isso muitos pais ainda precisam trabalhar internamente) ou serem ‘iguais’ aos outros. Mas fazemos para proporcionar melhor qualidade de vida aos nossos filhos dentro de suas especificidades. E nossos filhos são como são e isso não é ruim: é a mais pura diversidade!”
Heitor em um dos passatempos prediletos: brincando com jogos no tablet