Dorinho fundou “Voluntários do Sertão” a 19 anos

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Um dia, Dorinho sonhou em ajudar as pessoas de sua terra. Deixou o interior da Bahia, aos 14 anos, pensando no momento em que poderia voltar com a bagagem cheia.

Conta que realizou seu sonho lá atrás, quando percebeu que o que ganhava dava para compartilhar – e o fez. Por anos seguidos, levou mais do que o básico para matar a fome: chocolate, doces, brinquedos. Levou médicos, que pagou com o próprio bolso. E poderia ter parado por aí.

Mas não parou.

Hoje, continua acreditando que ajudar é sonho. E, por acreditar, auxilia pessoas a realizá-lo. Mais do que levar ajuda médica a milhares de pessoas todo ano, Dorinho enxerga o projeto Voluntários do Sertão como uma via de mão dupla. Quem recebe, tem carências sanadas. Quem leva a ajuda, entretanto, realiza bem mais do que doação.

– O sonho de muitas pessoas é poder ajudar as outras, ter condições para isso. Eu me sinto realizado em poder proporcionar esse sonho. Muita gente vai como voluntário e volta dizendo que foi o melhor momento que teve na vida. Saber que você faz parte disso…

Contraponto ao senso comum. Os voluntários realizam sonhos? Para Dorinho, o outro lado é um grande peso na balança.

– É o sonho de muitos sonhos. Dar seguimento a um trabalho que ano após ano ajuda outras pessoas é o que muitos queriam fazer e não têm condições. Muitos desistem e ficam com isso a vida toda, essa vontade de ajudar.

Todos, coletivo: é a palavra que mais repete ao longo da entrevista, em sinônimos e flexões. Entende que manter o Voluntários do Sertão é, então, unir sonhos do bem.

– A ajuda é no coletivo. Todos ajudam. Eu sei que foi uma idealização minha, mas continua porque é conjunto. Se fosse diferente, não sairia. Não seria tudo aquilo.

Um “tudo” que ele ainda tem dificuldades de mensurar.

– O que você faz de bem não tem que contar. Antes eu me preocupava muito com o que eu deixava de fazer… às vezes, falando, a gente nem acredita o tanto de gente que é beneficiada…

Em 19 anos, o projeto já contou com a ajuda de mais de três mil profissionais. A cada ano, uma cidade do interior baiano é escolhida para receber atendimentos em saúde, que vão do básico ao complexo. Até mesmo cirurgias são realizadas na semana em que os Voluntários do Sertão permanecem na região. Desde que começou, são mais de 350 mil atendimentos e procedimentos médicos, odontológicos e sociais.

Neste sábado, dia 27, mais um grupo embarca para dar continuidade a esse ciclo de bem. Mais de 1,3 mil pessoas se inscreveram nessa 19ª edição. Cerca de 250 profissionais selecionados irão para Poções, onde prestarão assistência também a outras nove cidades da região. A estimativa é de realizar 35 mil atendimentos.

Dorinho, como sempre, acompanha o grupo. A preocupação do ano todo desemboca nesses sete dias de ação intensa. O amor também.

– Embora exista a dificuldade, a gente consegue melhorar a cada ano, se superar. Sempre fico ansioso, mas sei que a equipe é feita de bons profissionais. Juntando todo mundo, acontece.

Quando passava avião por cima de Alegre, a torcida da meninada era feita de ingenuidade. Dorinho, que engrossava o coro, torcia para que o objeto voador caísse e, finalmente, lhe deixasse descobrir o que era, afinal.

Quem já tinha ido para as grandes cidades dizia que cabiam 200 pessoas ali dentro. E a imaginação do menino voava mais longe que os aviões.

Eu já escrevi sobre ele, em 2015, quando acompanhei a expedição dos voluntários em Condeúba e Alegre, distrito da pequena cidade, onde Dorinho cresceu. Escolheram voltar para a terra de Doreedson Pereira como marco dos 15 anos de projeto.

Na época, escolhi abrir um dos textos com a paixão dele pelos aviões. Sua mãe me contou que, quando criança, Dorinho abria os braços e fingia voar. Não há metáfora mais pertinente. Aos 14 anos, o menino alçou voo. Partiu de carona, porém, pelas estradas fincadas no chão. Mas voava em ideia.

Deixou o pequeno vilarejo para estudar e trabalhar em Ribeirão Preto.

Já fazia isso na sua terra, é bom dizer. Ainda criança, ele já era um empreendedor. Conta que quando tinha seus 10 anos negociava produtos como arroz, óleo, macarrão e cereais, montava sua própria barraca na feira e vendia.

A mesma feira onde, anos depois, sobrevoou com seu aeromodelo e fez alvoroçar a imaginação de grandinhos e pequenos. Quem seria o doido fazendo subir as telhas das casas e voar as barracas? “O piloto está passando mal”, diziam alguns, enquanto outros corriam para se esconder. Descobriram depois que era Dorinho, voando de fato, para além da metáfora, com seu próprio avião carregado de ajuda.

– Ver o que tem dentro do avião é o sonho de qualquer criança. Eu pude ter o meu avião e levar muita gente para voar. Tinha gente que dizia lá de cima: ‘Eu posso morrer hoje, que morro feliz!’.

Ajudar, para ele, é herança que nasceu nessa pequena cidadezinha.

Conta que seu pai, comerciante, era do tipo que tirava da própria mesa para dividir com quem precisava. A família tinha condições um tanto melhores do que a maioria das outras famílias de Alegre. Viviam com simplicidade, não havia brinquedos ou qualquer outro “luxo”, mas não faltava o básico na mesa para Dorinho e seus sete irmãos.

O pai, então, era requisitado para todo tipo de ajuda.

– Muita gente dependia dele. Desde levar a um hospital até para a comida. E tudo o que as pessoas precisavam, ele fazia. Tudo o que ele tinha, era para compartilhar.

Para Dorinho, então, está no dividir o sentido de ter.

Em Ribeirão, ele diz que trabalhou de tudo quanto foi possível. Foi copeiro em uma churrascaria no Centro, depois atuou como garçom, caixa, fazia de tudo. O jeito para os negócios, que já demonstrava ter lá na feira, continuou pulsante.

Mesmo quando trabalhava no restaurante, vendia importados. E foi conquistando renda a partir das vendas. Chegou a montar uma lanchonete própria, por volta dos 23 anos. Depois, foi para o ramo da informática e teve uma das maiores lojas de Ribeirão. Nunca ficou em um ramo só, como diz. Trabalhava com consórcio, vendas, muitas coisas ao mesmo tempo.

Em 2000, quando abriu sua própria loja de informática, percebeu que já tinha o suficiente para dividir. E começou suas expedições para Alegre, carregado de doações.

Foi nesse mesmo ano que se casou com a companheira da vida, com quem hoje tem duas filhas e divide a paixão pelo Voluntários do Sertão.

Atualmente, presta serviços agrícolas para usinas, tem uma fábrica de óculos, unidades móveis de serviços odontológicos e oftalmológicos, equipamentos agrícolas arrendados. Continua não sendo empreendedor de um negócio só.

– Me sinto muito abençoado. Não é questão de ser milionário. Não sou. É condição de ter as coisas, com pé no chão. Tudo o que eu quis comer nessa vida, eu comi. Para que melhor?

ixava de fazer, atendia sempre o triplo do que programava – e gastava três vezes o valor reservado.

– Era para atender de 500 a mil pessoas, apareciam cinco mil. E eu não ia deixar sem atender.

Explica que seu sonho de ajudar foi realizado logo aí, nos primeiros anos. Mas sonho é igual planta que a gente rega para crescer.

– Eu pensei: eu paro ou busco ajuda.

Buscou ajuda e, nesse começo, encontrou muitas e muitas portas fechadas. A vontade de ajudar das pessoas, porém, estava ali, pulsante, esperando uma oportunidade para se transformar em bem. A partir de 2006, então, o projeto começou a contar com voluntários para acontecer. E os atendimentos puderam, assim, continuar crescendo, ano a ano, com estrutura.

Todo o projeto é mantido por doações, aportes empresariais, eventos e festas organizados pelos voluntários. A cidade que recebe a equipe oferece alimentação e hospedagem que, Dorinho explica, é um valor muito pequeno comparado ao atendimento em saúde que o mutirão leva.

Para democratizar a ajuda, começou a visitar outras cidades, além da sua, que fora a única a receber a assistência por anos seguidos.

As histórias que marcam 19 anos de trajetória do bem não cabem em um livro.

– São casos e casos… gente que voltou a enxergar, voltou a andar por uma cirurgia simples, voltou a escutar com um aparelho…

Dorinho já cansou de ouvir que sua ajuda é baseada em intenções políticas. No começo, se preocupava e se irritava. Hoje, finge uma surdez conveniente. Diz que uma das motivações para continuar o trabalho é justamente garantir que as pessoas recebam ajuda sem precisar dar nada em troca.

– Nas cidades pequenas, a pessoa só consegue uma consulta se for do lado do prefeito. Quando consegue a consulta, não consegue o medicamento. É cabresto. E não pode ser assim. A saúde é um direito das pessoas.

Afirma que se dá bem com todos os lados, para não ter barreiras ao projeto do bem.

– Tanto oposição quanto situação ajudam.

E repete: não se vê como político.

– Eu não vejo a política beneficiar as pessoas. Se tem político lá e eles não fazem o que precisa, sou eu que vou fazer? Se eu entro, tudo isso acaba.

Conta que recebe conselhos de todo tipo: “Por que não faz o ano todo? Por que não pagar os profissionais para ampliar ainda mais?” Nada disso é levado em conta. Quer seguir na mesma trajetória acertada dos últimos 19 anos.

– As pessoas não estão ali por dinheiro. É melhor fazer o que se pode, de forma gratuita. É por isso que está continuando.

Quem conhece, sabe bem. Dorinho é inquieto. O corpo reflete a mente, em constante movimento. Por isso, está sempre criando, para si e para os outros.

Conta que levou um projeto de agricultura familiar para a região de Condeúba, como uma solução para a desnutrição constatada pelos médicos voluntários.

– Não adianta só levar a ajuda e ir embora. Tem que dar a manutenção, ensinar a plantar.

Aos 45 anos, afirma que realizou todos os objetivos que tinha na vida e, então, se sente feliz. Nem por isso, entretanto, se acomoda para ver a banda passar.

– A felicidade é isso aí… tocar o barco. Não importa o que você faz, faça bem feito.

Acredita que “o que vem de negativo não atinge, não”, em suas palavras. Sua proteção é a gratidão dos milhares de sonhos que ajuda a realizar.

– As pessoas me encontram e dizem: ‘Dorinho, eu rezo por você todos os dias!’. Tem coisa melhor do que isso?  Nada de ruim pode acontecer!

Neste sábado, mais uma expedição de voluntários parte em busca do sonho de ajudar. Milhares de pessoas terão acesso à saúde na semana que se aproxima. Dorinho vai acompanhar tudo, inquieto, atento a cada detalhe, para que cada pedacinho saia da melhor forma.

Quando a semana acabar, ele já começa a programar o próximo ano. Semente bem plantada, que é regada com amor, só tem o florescer como caminho.

Fotos de arquivo: crédito Voluntários do Sertão

 

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fonte:https://historiadodia.com.br