Por que os judeus não creem em Jesus.
Sob esse título o publicista judeu rabino Shraga Simmons, editor da Aish.com em Jerusalém, redigiu uma lista com alguns argumentos na tentativa de demonstrar que Jesus Cristo não é o Messias prometido de Deus e anunciado pelos profetas. Para ele:
1) Jesus não cumpriu as principais tarefas do Messias;
2) Ele não possuía as qualidades requeridas para aspirar ao título de Messias;
3) As profecias que os cristãos lhe aplicam são mal traduzidas.
Eis os três argumentos que mormente queremos examinar aqui. Eles vão servir para pôr em evidência a solidez da santa religião católica.
I – As principais tarefas do Messias, segundo o rabino Simmons O rabino Simmons reduz a quatro proposições o ensinamento das dezesseis profecias do Antigo Testamento acerca do papel do Messias. Segundo ele o Messias:
1. Erigirá o terceiro templo (Ezequiel 37, 26-28);
2. Congregará todos os judeus na terra de Israel (Isaias 43, 5-6);
3. Fará o mundo entrar numa era de paz universal, e dará fim ao ódio, à opressão e às doenças, tal como está escrito: “Uma nação não levantará a espada contra outra, e não se arrastarão mais para a guerra” (Isaias 2, 4);
4. Propagará o conhecimento universal do Deus de Israel, que reunirá a humanidade em um só povo, como está escrito: “O Senhor reinará sobre toda a terra. Naquele dia o Senhor será o único Deus e só o seu nome será invocado” (Zacarias 14, 9).
Segue o rabino: É fato histórico que Jesus não cumpriu nenhuma dessas profecias messiânicas.
De fato o rabino leu todas as profecias citadas com um preconceito subjacente: a concepção temporal do messianismo (o papel do Messias diz respeito sobretudo à sociedade terrestre, à felicidade neste baixo mundo). E só por tê-las lido nessa perspectiva terrestre (carnal) é que o rabino Simmons pôde acusar o Cristo de as não ter cumprido. Há-de se examinar antes de tudo esse pressuposto. O REINO MESSIÂNICO O anúncio do Messias perpassa e se reforça ao longo do Antigo Testamento, desde o primeiro livro (Gn 3, 15; 22, 18; e 49, 8-10) até Malaquias (Ml 3,
1), desdobrando-se em imagens particularmente impressionantes em Isaias e Daniel. O Messias será um rei judeu (descendente de Davi), cujo esplendor embaciará o dos demais reis; seu reino reunirá os povos em torno do culto do Deus verdadeiro. Todos estão de acordo com isso. Ora foi justamente desse reino messiânico que Jesus veio falar por meio de parábolas (uma dúzia delas se apresentam desde o começo como a descrição do reino tão esperado, semelhante a um grão de mostarda, a um tesouro escondido etc.).
Dominados pelos romanos os judeus da época sofriam havia séculos a influência de uma literatura apócrifa que apresentava o futuro Messias como o herói da guerra de libertação e conquista do mundo. Inflingiram-se grande mal ao se instruírem da noção temporal do reino de Deus. Contrapõe-se Jesus a tal juízo. Anunciam as parábolas que o Reino será belo e se estabelecerá sobre a terra, mas somente como antecipação provisória da realidade celeste (Nosso Senhor designa-o como O Reino dos Céus: Mt 13); ele se constituirá na dimensão política e social, mas é antes de tudo interior, havendo mister de buscá-lo para descobri-lo verdadeiramente (parábolas do tesouro escondido e da pérola preciosa); não virá com a pompa esperada pelos fariseus (Lc 17, 20), mas crescerá com lentidão (parábola do semeador), transformando a pouco e pouco o mundo (parábola do fermento), no qual não obstante haverá sempre maus (parábolas do joio, da rede, do homem em núpcias sem a roupa nupcial, das virgens imprudentes etc.); sobretudo, o reino não se estabelecerá no brandir do aço (Mt 26, 52), mas ao contrário sofrendo perseguições (Mt 5, 10-12; Jo 12, 24-25); as riquezas não serão mais de ouro ou prata, mas interiores (Mt 5, 3); os chefes não terão por fim dominar outrem, mas servi-los (Lc 22, 24-27; Jo 13, 15); enfim, ainda que surgindo entre os judeus (Mt 15, 24) e impondo-se ao mundo inteiro (Mt 28, 18), o reino não constituirá domínio mundial e temporal do povo eleito, mas ao contrário será lugar de eleição dos pagãos convertidos, figurados nas ovelhas reencontradas (Jo 10, 16), no filho pródigo que retorna ao lar (Lc 15), no publicano arrependido (Mt 9, 9-13; Lc 18, 14 e 19, 2) e na conversão dos pecadores públicos (Lc 7, 39 e 23, 43); por sua vez os judeus – os primeiros a serem chamados – excluir-se-ão a si, como indicam as parábolas dos vinhateiros homicidas (Mt 21, 33-46), das núpcias reais (Mt 22, 1-14) e do grande festim (Lc 14, 15-24).
Confrontam-se duas concepções opostas do reino messiânico durante a vida pública do Cristo. Quando vem o demônio tentar o provável Messias, fala-lhe apenas de satisfações do corpo, glória humana e domínio mundial (Mt 4, 1-11), em conformidade ao comportamento que a maioria espera do Messias. Mais tarde após a multiplicação dos pães, quando proclamaram-no rei, evade-se Jesus para evitar que os judeus se revoltem contra os romanos. (Jo 6, 15).
Interrogado por Pilatos reconhece-se todavia como rei (Jo 18, 37), mas precisa que seu reino não é deste mundo (Jo 18, 36). Pouco antes da Ascenção os próprios apóstolos manifestaram uma como ignorância acerca da natureza do reino messiânico: “Senhor, é porventura agora que ides instaurar o reino de Israel?” (At 1, 6). Somente a vinda do Espírito Santo em Pentecostes pôde esclarecê-los. Dois mil anos mais tarde ainda é a mesma a pedra de tropeço: Nosso Senhor Jesus Cristo viera pregar um reino sobrenatural, salvando as almas das garras do demônio, distribuindo as riquezas da graça e caridade divinas, e preparando coroas de glória eterna no outro mundo.
Persistem os judeus ao contrário na expectativa de reino, riquezas, coroas, vitórias e glórias terrestres, interpretando nessa perspectiva as profecias do Antigo Testamento. A oposição é insolúvel.
A QUESTÃO PRIMORDIAL O debate honesto entre judeus e cristãos não deveria remeter-se a tal ou qual profecia em particular, mas à visão de conjunto em que as profecias se cumprem.
O judeu que realmente aceitasse pôr em questão – um instante que fosse – os preconceitos que lhe inclinam à interpretação das profecias de modo sobretudo temporal e terrestre estaria, com a graça de Deus, mui próximo da conversão. Como não notaram logo que Jesus de Nazaré cumpriu, mas num plano superior, tudo quanto se prometera?
O rabino sabe que a promessa messiânica primordial é a do rei, descendente de Davi, que deve impor sua autoridade à terra inteira, reunindo os povos sob o culto do Deus único. Caso libertassem a inteligência dos preconceitos nacionais, como não enxergar que Jesus de Nazaré estendera tal autoridade por sobre a terra e espalhara por todo lado o culto do Deus único? Antes do nascimento do Cristo o povo judeu mal e mal perseverara no culto do Deus único. Como fosse constante a tentação de fundir para si o bezerro de ouro ou prostrar-se de joelhos diante de Baal, uma série de profetas tivera de reconduzi-los ao reto caminho, vaticinando-lhes sempre que um dia todos os povos adorariam Javé. Mas os judeus mal podiam acreditar nisso, antes preferiram adotar os deuses das nações.
Sucederam-se exortações, ameaças, maldições ao longo do Antigo Testamento com o fito de conservar o povo eleito na fidelidade da aliança com o Deus único. – E eis que são os povos pagãos, prestos, um após o outro, que se convertem ao Deus único. Receberam e abraçaram a revelação feita a Abraão, Isaac e Jacó. Esse inaudito retorno tem nome – cristianismo. Ponderasse com seriedade nosso judeu certamente ficaria perturbado com esse fato histórico tão incontestável quanto inesperado: em três séculos os discípulos de Cristo acabam com a idolatria; mergulham os gregos – orgulhosos de sua filosofia – na leitura meditada dos livros santos do judaísmo; prosternam os imperadores romanos – conquistadores do universo – diante do Filho de Deus, Jesus de Nazaré. Não é evidente o cumprimento da promessa divina feita a Abraão (Gn 22, 18)?
Descomponha-se talvez nosso judeu: como dar o título de rei a um crucificado? Entretanto, se quiser ser honesto, ele deve admitir que centenas de milhões de seres humanos aclamaram realmente Jesus de Nazaré rei. Tão desconcertante, agastante – irritante até – quanto lhe pareça essa realeza de cariz religioso, não se pode considerá-la como inexistente. Durante séculos os reis e os imperadores – mesmo Napoleão, após a sagração – reconheceram em público Jesus de Nazaré mestre soberano. O reinado do Cristo – essencialmente celeste e suprapolítico – de fato difere de tudo quanto esperam os judeu. Ainda que recusem a acreditar no seu caráter messiânico, não podem negar-lhe a existência, já que possui uma dimensão terrestre. Argüirá nosso judeu que a Bíblia promete o triunfo temporal, que os profetas não mencionam reinado suprapolítico, riquezas espirituais, destino sobrenatural – mas a felicidade terrestre. Ora promessa é promessa. O Messias deve dar a felicidade terrestre.
Não é Deus infinitamente superior ao homem?
Quem tem o direito de restringir a priori sua munificiência, encerrando-a nos estreitos limites terrestres? Por outro lado é faltar à promessa cumpri-la com superabundância, num nível superior? Caso Deus queira dar mais que prometera, como isso nos lesa? Os oráculos dos profetas deixam entrever nas mais belas passagens a realização que ultrapassa a ordem material.]
Aquilo de Isaías, por exemplo: Senhor virá estabelecer-se sobre todo o monte Siãoe em suas assembléias:de dia como uma nuvem de fumaça,e de noite como um fogo flamejante.Porque sobre todos se estenderá a glória do Senhor,como a cobertura de uma tenda,à guisa de sombra contra o calor do dia,e de refúgio e abrigo contra a procela e a chuva. (Is 4, 5-6)
Ou de Ezequiel: Derramarei sobre vós águas puras,que vos purificarão de todas as vossas imundíciese de todas as vossas abominações.Dar-vos-ei um coração novoe em vós porei um espírito novo;tirar-vos-ei do peito o coração de pedrae dar-vos-ei um coração de carne.Dentro de vós meterei meu espírito,fazendo com que obedeçais às minhas leise sigais e observeis os meus preceitos. (Ez 36, 25-27) Os textos se completam, sucedem e repetem, não há como lhes escapar. Por menos que nosso judeu consinta com a graça que se lhe oferece, a evidência está aí, ao alcance das mãos: todas as passagens vazadas em descrições de prosperidade terrestre (terra prometida, vinhas, frumento, alimária…), dão a estas sentido superior, sentido espiritual.
Valem as promessas terrestres apenas para o tempo do Antigo Testamento.
Deviam elas ceder espaço à Nova Aliança, de que eram preparação e figura.
Não há se espantar de que realidades espirituais se anunciassem por imagens materiais, pois, sejamos francos, poderia ser de outro modo? Como anunciar o desconhecido, o sobre-humano, o celeste, senão se amparando de termos conhecidos, rementendo-se antes de tudo a realidades humanas e terrestres? Caso abandonasse os preconceitos, poderia o próprio rabino Shraga Simmons chegar a tal conclusão. Basta-lhe orar com humildade e sinceridade, como fizera-o num dia de 1826 um certo Jacob Libermann, filho do rabino de Saverne: Lembrado do Deus soberano das minhas preces, lancei-me de joelhos e conjurei-o a esclarecer-me acerca da verdadeira religião. Implorei a Ele dar me conhecimento da crença cristã, caso verdadeira; se não, afastar-me dela o quanto antes. O Senhor, sempre junto aos que o invocam de toda a alma, acolheu minha prece. De imediato fui esclarecido, vi a verdade: a fé penetrara em minha alma e inteligência1 Antes de orar assim, há mister de renunciar certos preconceitos, dos quais não é fácil se desembaraçar, uma vez que são absorvidos juntos com o leite materno. Como dissera outro convertido célebre, calejado por tais combates:
Não se deve combater objeções racionais, antes há de se apazigüar as angústias da consciência judaica. Não era eu assaz instruído para compreender a identidade entre judaísmo e cristianismo. Acreditava que eram duas religiões diferentes, o Deus de Abraão não era o Deus dos cristãos. Tinha medo de aprofundar a questão2 Como muitos judeus, o rabino Simmons apega-se com desespero à concepção do “caderno de tarefas” do Messias.
Ele deve construir o terceiro templo, congregar todos os judeus na terra de Israel, decretar a paz universal e finalmente propagar “o conhecimento universal do Deus de Israel, que reunirá a humanidade em um só povo”.
Vejamos isso de mais perto.
1. Primeira tarefa: o terceiro templo? Reconstruir o templo não faria sentido no tempo de Jesus Cristo, porque o segundo templo de Jerusalém ainda estava de pé3. Entretanto o mesmo Jesus Cristo aludira à construção. “Destrui o templo, disse ele aos judeus, e eu o reedificarei em três dias”. Não está errado o rabino Simmons, apesar das aparências, em exigir do Cristo a construção do terceiro templo. Mas aqui como sempre a realidade supera e como eclipsa a expectativa dos judeus, por demais materialista: Jesus “falava do templo do seu corpo” (Jo 2, 21). Anuncia Jesus, pouco depois, à samaritana: Mulher, acredita-me, vem a hora em que não adorareis o Pai, nem neste monte nem em Jerusalém. […] Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja.[…] [Jo 4, 21,23]
Apegados ao templo nacional os judeus ainda deploram-no 2000 anos após sua destruição. Mas o Messias – que anunciara a destruição (“Não restará pedra sobre pedra” Mc 13, 2) – inaugurou um culto espiritual. Chamou todos os homens a se tornarem “pedras vivas” (I Pd 2, 4-5) do templo onde ele mesmo é a pedra angular (I Pd 2, 6-8), e também a cabeça, porque o templo é seu corpo (Jo 2, 21; 1 Cor 12). Enquanto os judeus se aferram à idéia do templo material, composto de pedras mortas e erigido em um lugar específico do planeta, o Cristo propõe o templo verdadeiramente definitivo, apto a durar pela eternidade, logo despegado da matéria; um templo universal, onde todos os homens poderão entrar, templo ao qual se integrarão até, por meio do batismo. – O templo cristão é concreto e real Um judeu poderia considerar essa explicação uma batata quente intelectual, destinada à ocultação de uma dificuldade incômoda. Parecer-lhe-ia arbitrária a aplicação do nome “templo” ao corpo de Jesus Cristo, sendo tentado a afastar o argumento com desdém. Contudo:
1. As noções de templo-corpo (Jo 2, 21) e de pedras vivas (I Pd 2, 4-5) não se forjaram de forma alguma segundo as necessidades da causa, com o fim de responder ao rabino. São elas princípios fundamentais da revelação cristã: a) Não se pode crer em Jesus Cristo sem admitir que seu corpo humano – dentro do qual sua alma humana presta ao Pai incessantemente o mais perfeito culto que possa haver – é por natureza um templo (segundo a definição corrente da palavra, templo é o edifício dedicado ao culto de Deus), superior a todos aqueles que os homens possam construir; b) Não se pode aderir ao ensinamento cristão sobre o batismo (que incorpora-nos o Cristo) sem reconhecer que os batizados se integram a esse templo como pedras vivas. Eis aí o cristianismo. Ainda que se recusem a crê-lo, os judeus não podem negar que ele é assim, e que existe de fato. Podem a rigor censurar ao Cristo de não haver construído o templo material que eles esperavam, mas não de não haver construído o templo. E isso basta para destruir a objeção.
2. Até os profetas, malgrado a importância que conferiam ao templo (capítulos 30-34 de Jeremias, 40-48 de Ezequiel), dedicavam-se à promoção do culto espiritual e na relativização do templo material. Busque-se nas admoestações de Jeremias: Não vos fieis em palavras enganadoras, semelhantes a estas: Templo do Senhor, templo do Senhor, aqui está o templo do Senhor. (Jr 7, 4) O último profeta, Malaquias, anuncia o sacrifício universal, oferecido em toda parte, do qual participam as nações (i. é, os não-judeus): Porque, do nascente ao poente, meu nome é grande entre as nações e em todo lugar se oferecem ao meu nome o incenso, sacrifícios e oblações puras. Sim, grande é o meu nome entre as nações – diz o Senhor dos exércitos. (Ml 1, 11) 3. Finalmente o judaísmo não poderia em consciência apontar a ausência de templo no cristianismo, visto que ele mesmo está privado de templo há quase vinte séculos! No momento em que Jesus oferecia o sacrifício na cruz (sacrifício do qual é ao mesmo tempo sacerdote, vítima e templo), o véu do templo de Jerusalém rasgou-se todo de alto a baixo (Mt 27, 51). Menos de quarenta anos depois estava totalmente destruído o templo judeu. Ora a ausência de templo material implica ao judaísmo a ausência do culto obrigatório prescrito por Deus no Antigo Testamento.
Desde o ano 70 estava abolido o culto que Moisés estabeleceu.
Não existe mais o sacerdócio de Aarão. Não há mais sacrifícios públicos. O livro do Levítico caducou, o judaísmo deveu restabelecer-se sobre outros fundamentos (as preces na sinagoga tomaram o lugar dos sacrifícios do templo, e aos sacerdotes se substituíram os rabinos). Compele-se, pois, a devolver ao rabino Simmons sua própria objeção: se o templo material é tão importante, por que permite Deus tamanho eclipse já há quase 2000 anos? Por que o eclipse – anunciado pelo Cristo (“Não restará pedra sobre pedra”) – deu-se justo após a morte deste, no instante mesmo em que vinha de anunciar a criação do novo templo universal e espiritual? Há nisso sinais que deveriam confranger até aos cegos.
2. A congregação de todos os judeus na terra de Israel. A segunda grande missão do Messias: congregar todos os judeus na terra de Israel. Ora deu-se justamente o contrário. Portanto não é Jesus o Messias prometido. O raciocínio do rabino seria impecável caso Deus prometesse de modo absoluto que o Messias congregaria todos os judeus na terra material de Israel. Mas indica a Santa Escritura o contrário. As promessas de Deus de prosperidade temporal a seu povo são condicionais: Se fordes fiéis, proteger-vos-ei e abençoar-vos-ei; mas se infiéis, entregar-vos-ei nas mãos dos inimigos e dispersar-vos-ei. É praticamente o resumo de todo o Antigo Testamento:
É a constante sob os juízes, desde Josué até Samuel; também sob os reis, desde Saul até Sedecias; e finalmente sob os Macabeus, desde Matatias até Hircam. Enquanto se mantivessem fiéis, Deus os protegia de modo miraculoso; logo saíssem da fé, eram punidos na proporção da grandeza de sua revolta: por vezes durava sete anos, outras de dez a vinte anos conforme a gravidade dos crimes. As penas nunca iam além disso, até ao tempo do ímpio Manassés, quando Deus por meio do cativeiro aplicou-a mais longa – durou ela setenta anos4 As promessas temporais estão sempre sob condição. Quando a condição não é explícita, subentende-se, como o indicara o próprio Deus, alertando contra a interpretação gramatical das promessas: Ora anuncio a uma nação ou a um reinoque vou arrancá-lo e destruí-lo.Mas se essa nação, contra a qual me pronunciei,se afastar do mal que cometeu,arrependo-me da punição com que resolvera castigá-la.Outras vezes, em relação a um povo ou reino,resolvo edificá-lo e plantá-lo.Se, porém, tal nação proceder mal diante de meus olhose não escutar minha palavra,recuarei do bem que lhe decidira fazer. (Jr 18, 7-10)
Em relação ao povo da aliança nenhuma das promessas do Antigo Testamento é absoluta, mas sim o liame entre fidelidade e recompensa, infidelidade e maldição. Enumera o capítulo 23 do Levítico toda a série de flagelos com que Deus punirá a infidelidade, culminando com a pior dentre todas, a dispersão: Se, apesar disso, não me ouvirdes, e me resistirdes ainda, marcharei contra vós em meu furor e vos castigarei sete vezes mais, por causa dos vossos pecados. Comereis a carne de vossos filhos e de vossas filhas. Destruirei vossos lugares altos e quebrarei vossas estelas solares; amontoarei vossos cadáveres sobre os de vossos ídolos, e minha alma vos abominará. Reduzirei a deserto as vossas cidades, devastarei vossos santuários e não aspirarei mais o suave odor de vossos perfumes. Desolarei vossa terra e vossos inimigos ficarão estupefatos com ela quando a habitarem.Eu vos dispersarei entre as nações, e desembainharei a espada atrás de vós; vossa terra será devastada e vossas cidades se tornarão desertas. Então gozará a terra os seus sábados enquanto durar a sua solidão, quando estiverdes na terra de vossos inimigos; então a terra gozará os seus sábados e repousará. Nos dias em que for devastada, ela terá o repouso que não gozou nos sábados do tempo em que a habitáveis.
Naqueles dentre vós que sobreviverem, porei tal espanto em seus corações na terra de seus inimigos, que o ruído de uma folha agitada pelo vento os porá em fuga: fugirão como se foge diante da espada e cairão sem que ninguém os persiga. Sem que ninguém os persiga, tropeçarão uns sobre os outros, como diante da espada. Não podereis resistir aos vossos inimigos. Perecereis entre as nações e a terra inimiga vos consumirá. Os que sobreviverem consumir-se-ão por causa de suas iniqüidades na terra de seus inimigos, e serão também consumidos por causa das iniqüidades de seus pais, que levarão sobre si. (Lv 26, 17-39) Ora como nota Blaise Pascal não há relação entre o cativeiro de Babilônia e a narração da terrível dispersão que se abateu sobre o povo judeu a partir do ano 705. Como a diáspora do ano 70 fosse a pior maldição que desceu sobre o povo eleito, ela é por força conseqüência de seu maior crime.
As profecias divinas não permitem ir ao contrário disso. Segundo Maimônides (e a maioria dos judeus hoje em dia) o exílio não passaria de um meio para espalhar a mensagem judaica no mundo inteiro, como o levedo na massa – uma misteriosa e derradeira purificação (mas interminável!) antes do advento do Messias. Levando em conta tal hipótese, ainda assim o exílio não se torna menos uma maldição – o que necessariamente é, antes de tudo – já que as promessas formais de Deus vinculam de forma inarredável dispersão e punição. (O fato de o cativeiro preparar a vinda do Messias, difundindo as profecias, não impede que ele seja por natureza maldição sobre o povo eleito). Qual seja o modo de contornar o problema, a indagação permanece: que crime se cometeu para atrair tamanho opróbrio?
Em 1778 o padre Beurier – célebre predicador – interpelava desta feita os judeus seus contemporâneos: Há mais de mil e setecentos anos que Deus os pune com severíssimo rigor; há mister pois de que tenhais culpa sobeja aos vossos pais, mesmo àqueles viventes à época de Manassés. Ora qual poderia ser vosso crime?
Não é a idolatria, que Deus aborrece amiúde em vossos ancestrais; tendes louvável horror ao culto dos ídolos. Não é também a desobediência à lei de Deus imposta, de vos não mesclar com povos estrangeiros; vós a cumpris com tal justeza que não é possível ir mais além. Qual crime seria maior que a idolatria e as abominações todas que se cometiam ao tempo de Manassés, senão a morte que infligistes ao Messias?E eis vós dispersos por todo o mundo há mais de mil e setecentos anos, e não obstante resistis sempre. Não é isto o cumprimento literal da profecia de Davi, que diz ao salmo 58: “Não os destruís, ó meu Deus, mais dispersai-os por uma virtude de vossa onipotência” (Sl 58, 12) 6? Um mancebo judeu do séc. XIX, Simon Théodore Ratisbonne (citado mais acima), perguntou-se a si as mesmas questões, e elas levaram-no ao catolicismo. Em 1824 ainda hesitante escrevia a um amigo: Li com atenção nossa história, e concluí que a cessação do culto e a ruína do templo, a destruição da Cidade Santa, a confusão entre as tribos e diáspora da nação judia – que todos os fatos coincidem com o estabelecimento do cristianismo no mundo. […] Vislumbro a situação, e isso me dói: eu daria a vida para tirar meus irmãos dessa situação… mas não posso mais viver entre eles, nem invocar o Deus de meus pais na mesma casa de oração […]7 Responsável pelas escolas israelitas da Alsácia (seu pai era presidente do Consistório) Théodore teve três anos depois a oportunidade de citar, diante dos pais dos alunos, o capítulo 28 do Deuteronômio, em que se enumeram as bençãos e maldições anunciadas ao povo de Israel.
O texto causou espécie:
Se não quiseres escutar a voz do Senhor teu Deus, a maldição se abaterá sobre ti e te destruirá. […] Tu serás varrido para todos os cantos da terra. […] O Senhor te ferirá de cegueira e de embotamento, de modo que andes às apalpadelas em pleno meio-dia. […] Tu serás em todo tempo denegrido por calúnias e oprimido por violências, sem que ninguém te defenda. […] Essas maldições cairão sobre ti e tua descendência como sinal e prodígio […]. Foi interrompida a leitura sob os protestos furibundos de um dos ouvintes que, intimando aos berros o público a se retirar, entendera ali um ataque contra as tradições judaicas. Respondeu Théodore calmamente que limitava-se a ler as palavras de Moisés, retomando a leitura. Compreendeu que não poderia adiar ao infinito sua profissão pública da fé cristã. Alguns meses depois declarou ao pai:
Sou cristão. […] Sou cristão, mas adoro ao mesmo Deus que meus pais, o Deus três vezes santo, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, e reconheço Jesus Cristo como o Messias, o Redentor de Israel. No séc. XIX sem embargo do restabelecimento do estado de Israel em 1948 e a admirável ressurreição da língua hebráica, a situação dos judeus não mudou em essência. Continuam sempre sem templo, sem sacerdote, sem sacrifício, e o povo ainda está mui disperso. Anuncia a fundação do estado de Israel o fim da dispersão e prepara a conversão dos judeus? Preludia ela ao contrário nova catástrofe prestes a lhes abater?
O futuro dirá.
Em todo caso longe de provar a não-vinda do Messias, a brutal dispersão dos judeus – menos de quarenta anos após a crucifixão – é sinal manifesto de sua vinda. 3. A Paz Universal Terceira tarefa do Messias, segundo o rabino Simmons: “Fazer o mundo entrar numa era de paz universal, e pôr fim ao ódio, à opressão, ao sofrimento e à doença”. Cita o rabino para isso a célebre passagem de Isaias: – O texto de Isaias No fim dos tempos aconteceráque o monte da casa do Senhorestará colocado à frente das montanhas,e dominará as colinas.Para aí acorrerão todas as gentes,e os povos virão em multidão:Vinde, dirão eles, subamos à montanha do Senhor,à casa do Deus de Jacó:ele nos ensinará seus caminhos,e nós trilharemos as suas veredas.Porque de Sião deve sair a lei,e de Jerusalém, a palavra do Senhor.Ele será o juiz das nações,o governador de muitos povos.De suas espadas forjarão relhas de arados,e de suas lanças, foices.Uma nação não levantará a espada contra outra,e não se arrastarão mais para a guerra. (Is 2, 2-4)
Essa profecia incontestavelmente messiânica anuncia a conversão dos pagãos ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó.
As imagens são pungentes, mas são imagens. Ninguém ousaria interpretá-la como a obrigação de transportar a montanha de Sião para o cume do Himalaia, nem como o estabelecimento de todos os povos da terra naquele local. Não há razões para se forçar o sentido dos últimos versículos em direção a um pacifismo mundial (que por lógica deverá abranger até aos animais, se se interpreta de modo idêntico às novas do capítulo 11: “Habitará o lobo com o cordeiro, repousará a pantera com a cabra […] folgará a criança de peito sobre o ninho da serpente etc.8“).
Isaías limita-se ao anúncio de que a revelação do verdadeiro Deus franquear-se-á a todos os pagãos, que encontrarão ali fonte de justiça e paz. O busilis está na natureza dessa paz. – A paz cristã Produz Jesus Cristo uma paz sobretudo interior e sobrenatural. Os judeus esperam a paz exterior, civil, social. Mas não é a paz interior a mais importante? Não é a guerra civil a pior das guerras? Que dizer então da guerra intestina que o homem deve travar e sofrer no interior da alma? Todo homem experimenta a luta íntima entre a razão (que mostra o que é reto, honesto, justo) e as diversas paixões. No imo do nosso ser, desde o pecado de Adão, a relação com Deus está falseada.
Vindo curar tal desordem fundamental Jesus Cristo traz a paz (que conforme a afamada definição de Santo Agostinho é “a tranqüilidade da ordem”). Oferece a todos os homens a amizade de Deus. O coração humano, tão preste na acusação ao próximo, compreende que o principal inimigo é doméstico. Daí forja da espada relhas de arado, i. é, volta as armas contra si mesmo, aplica-se a romper a própria dureza interior, a arrancar a sarça dos vícios, abrir-se à semente da palavra de Deus. Com seu cortejo de dons e virtudes a graça restabelece a ordem interior da alma humana – não em um repente brutal e espetacular, mas suave e progressivamente, na medida em que o homem, com sua liberdade, colabore a favor da ordem que Deus lhe quer infundir. – A paz real e concreta
Um judeu qualificará a paz cristã como utopia ou ilusão piedosa.
Que releia os profetas. No capítulo 53 de Isaias – em que se descreve a missão messiânica como um sacrifício propiciatório do pecado – não se vislumbra à evidência que se deve em primeiro lugar restabelecer a paz entre o homem e Deus? Demais ainda que essencialmente sobrenatural não dá para contestar a paz que o cristianismo leva consigo, uma vez que ela tem também conseqüências temporais e visíveis, que os judeus não poderiam negar. Como explicar sem ela a fortaleza suave e calma (em um sorriso, no mais das vezes) de milhões de mártires cristãos? O ardor com que as maltas de jovens belicosos num átimo se livraram das espadas para arrotear as terras dos monastérios (realização literal do oráculo de Isaias 2,
4)? Que o diga São Bernardo de Claraval que, no séc. XII, conduzira à vida monástica seus irmãos, tios e pai, quase todos devotados ao serviço de armas. Mas o apelido ilustre não deve obnubilar os milhares de jovens que em todas as épocas fizeram o mesmo sacrifício. No tempo de São Bernardo o conde Godefroy de Cappenberg, descendente de Carlos Magno, transformara o castelo em monastério, aplicara as riquezas em prol da fartura dos pobres, consagrara as mãos ao consolo dos leprosos, e passara a vida inteira em obediência perfeita, na companhia de seu irmão Atton (padrinho do imperador Frederico Barba Ruiva) que fizera a profissão monástica junto com ele. A “conversão” do lobo de Gubbio, obra de São Francisco de Assis, cumprira literalmente a profecia de Isaias 11,
6 (“Habitará o lobo com o cordeiro”) 9. Mas isso foi apenas a ilustração visível do invisível que se passa nas almas. Por exemplo, a alma do ardoroso Francisco de Sales, que empregara a vida inteira para vencer seu temperamento, até que todo o universo o conhecesse como o manso bispo de Genebra10. Nem todos os cristãos tornar-se-ão santos da mesma têmpera. Muitos se conservam maus, infiéis às graças recebidas. Os santos amiúde só se santificam lentamente. Mas a santidade heróica está presente na vida da Igreja como um facho de luz e paz, que neste séc. XX se acendeu no campo de Auschwitz, onde um padre católico, Maximiliano Kolbe (1894-1941), deu a vida voluntariamente para salvar um prisioneiro. Encerrado no bunker da fome, a caridade, a docilidade e o regozijo que lhe radiavam impressionaram até aos sentinelas nazistas. Testemunha o doutor Nicet Wlodarski:
Um oficial, um alemão responsável pelo bunker, […] qualificou o pe. Kolbe como homem de supina coragem, herói verdadeiramente sobre-humano. Destacava também que a presença e a calma do pe. Kolbe faziam grande impressão aos SS que de quando em vez olhavam para o bunker. Dizia que para os SS era um verdadeiro choque psicológico11. Conta Bruno Borgowiec, utilizado como interprete no bunker: Quando abri a porta de ferro, não mais vivia; mas me parecia vivo. Era radiosa sua face, de uma forma insólita, olhos arregalados e fixos num ponto. O rosto inteiro estava como em êxtase. Nunca esquecerei tal espetáculo.
E numa outra narrativa: Seu corpo estava limpíssimo e luminoso. Qualquer um naquela situação ficaria abalado, achando estar diante de um santo. Seu rosto resplendia de serenidade – diferentes dos demais mortos, estendidos sobre o solo, marcados na face pelo sofrimento12. Desqualifique-se a narração das muitas testemunhas judias nos campos de concentração, e imediatamente estará em maus lençóis. Esta serenidade, este regozijo no sofrimento são características dos mártires cristãos. Donde viria essa paz sobrenatural, senão do Senhor Jesus? – Até a paz temporal O cristianismo não confere diretamente a paz temporal, mas esta não lhe é de modo algum estranha. O planeta Terra, que ardia havia séculos em meio aos reencontros de armas e clamores de guerra, parece acalmar-se e recolher-se à aproximação do nascimento do Menino-Deus. Impõe o imperador Augusto a paz universal (tanto no interior do Império quanto nas fronteiras), fechando após a batalha de Actium (31 a.C) as portas do templo da guerra (quase sempre abertas desde a fundação de Roma). O mundo está em paz quando os anjos vieram cantar a norte de Natal: Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de boa vontade.
A Igreja Católica será a guardiã dessa paz. Apesar da ruína do Império Romano sob o peso das invasões bárbaras, a Igreja não se deixa arrastar por elas, mas as vence de forma pacífica, modificando pouco a pouco as almas: atrai uns aos monastérios, impõe a outros a “paz de Deus” ou a “trégua de Deus”, e das hordas que deviam soçobrá-la deu origem a diferentes nações da Cristandade. Nunca pretendeu Jesus estabelecer o paraíso sobre a terra. O joio continuara misturado com a boa semente (Mt 13, 41), não faltando atrocidades mesmo no interior do cristianismo. Mas a prédica constante da caridade, sobretudo o exemplo dos santos deram seus frutos. A Igreja protege o casamento – por conseguinte mulheres e crianças. Sabe resistir aos reis e imperadores quando se levam pela tirania. Suprime a passos lentos a escravidão. Instaura a sociedade cristã que, em meio às misérias terrenas, exibe-se sem sombra de dúvidas mais humana, mais atenta às fraquezas que todas as civilizações pagãs13. Sem oferecer diretamente a paz temporal, Jesus Cristo a dá por acréscimo, na proporção em que as nações submetem-se à sua lei. –
Um exemplo Para encerrar a profecia de Isaias, dedicamos de boa mente ao rabino Simmons o exemplo de um de seus predecessores, assim descrito por Tertuliano: Paulo, de perseguidor tornou-se apóstolo; o que antes vertia o sangue da Igreja mudou o gládio em estilete e transformou o cutelo em relha de charrua14.
4. Quarta tarefa: Um Só Povo Quarta tarefa do Messias: “Propagar o conhecimento universal do Deus de Israel, que reunirá a humanidade em um só povo”. As pessoas que sabem distinguir a religião e a política (Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus) dirigem, é claro, essa promessa para a ordem religiosa. Constatam por isso que ela se realizou, pois que a sociedade única – reunindo em si todas as nacionalidades, sem mesclá-las nem confundi-las – espraiou pelo mundo inteiro o conhecimento do Deus único de Israel. Já os que sonham com o messianismo de fundo temporal interpretam as promessas de unificação mundial sob a perspectiva humana (natural, política, terrena). Concluem, pois, que elas não se cumpriram ainda.
Para decidir entre as duas interpretações concorrentes, é bastante comparar os frutos visíveis de uma e outra, assim como suas lógicas internas.
Julga-se a árvore pelos frutos Mais vale um pássaro na mão que dois voando, diz o provérbio.
Quando se trata do “um só povo”, a Igreja Católica acumula já uma grande vantagem sobre os judeus: o [povo] da Igreja existe! É indiscutível tal existência, visto que a Igreja possui unidade exterior e universalidade mui discerníveis, reconhecidas até pelos que não têm fé. Historicamente o cristianismo é a primeira religião universal. Ao passo que cada povo (ou família) tinha suas divindades nacionais, o cristianismo os prostra todos diante do Deus único. Conquistou a terra inteira – em paz, sem violentar ninguém, sofrendo ao contrário longas e sanguinolentas perseguições15.
A comparação ao islã (que fora a segunda religião universal e, sob certos aspectos, contrafação da primeira) neste mister é esclarecedora. O universalismo cristão é um universalismo de paz (após dois milênios, engendra continuamente o cristianismo frutos de paz – os santos). Quem pode dizer o mesmo do messianismo temporal? – Os frutos do messianismo temporal Quais são nos últimos 2000 anos as grandes empresas universalistas inspiradas do messianismo temporal? – O islã, cujas vítimas ainda se contabilizam16; – As utopias revolucionárias17, mormente o comunismo, responsável por mais de cem milhões de mortes18; – E atualmente a ideologia “planetária” (eliminem-se as fronteiras19!), de que podemos duvidar que constitua o caminho da felicidade humana. Estupor é a única palavra que traduz o sentimento do historiador defronte à força irresistível com que as utopias mortíferas – contrárias ao bom senso mais elementar – se impõem num repente, como a maré montante, à grande parte da humanidade. Até as mais materialistas dentre elas, as ideologias marxistas, parecem animadas de típico fervor religioso, uma como inspiração mística. Retiram todas elas mais ou menos diretamente suas forças da esperança messiânica de Israel, certamente esperança de origem divina, por dínamo de tamanha energia, mas também com certeza deformada, sendo por isso origem de tantos desastres.
As loucuras modernas não são tanto “as idéias cristãs tornadas loucas” (Chesterton20), mas sim as idéias judaicas: é a esperança messiânica desviada do verdadeiro objeto (a salvação eterna), aplicada à ordem temporal. O pior é que o messianismo temporal sobrevive aos desastres que provoca. E continuará a provocá-los novamente porque, segundo o rabino Simmons (que neste ponto invoca a autoridade de Maimônides), “cada geração traz no seio um indivíduo capaz de tornar-se o Messias”. – “Um só povo”, diz o rabino Depois dos frutos (de paz, por um lado; de morte, por outro), comparemos a lógica interna do universalismo católico com o do messianismo temporal.
A esperança do rabino de “reunir a humanidade num só povo.”
conduz a outra questão: o povo judeu está convidado a fundir-se com os demais para formar um único povo? Neste caso como conservariam todas as prerrogativas a que o rabino se mostra tão apegado? Mas se ele se recusa a mesclar-se com outros, que significa esse povo único? Toca-se aqui na ferida da formidável contradição interna da esperança messiânica dos judeus. Em realidade conveio que o próprio Deus interviesse para resolvê-la, esclarecendo os apóstolos de que a Igreja só poderia abrir-se à humanidade inteira se abandonassem as idiossincrasias judaicas21. “Não há mais judeu nem grego […], sois todos um em Cristo Jesus”, exclama São Paulo, que prossegue: “E se vós sois do Cristo, sois da descendência de Abraão, e herdeiros da promessa” (Ga 3, 28-29). Dito doutra forma os critérios de pertencimento ao povo eleito não são mais raciais (descendência física de Abraão), mas espirituais (incorporação mística em Cristo). Temendo a perda de seu estatuto privilegiado, a sinagoga recusou a promessa. Renegou no mesmo ato a profecia do povo único.
O judaísmo atual lança em rosto da Igreja o fato de esta proclamar-se a “nova Israel”. Vê aí uma pretensão inadmissível. Mas tal “pretensão” manifesta justamente a notável realização da profecia messiânica. Cumpriu-se na Igreja (“nova Israel”) o oráculo de Zacarias: Jerusalém vai ficar sem muros, por causa da multidão de homens e de animais que haverá no meio dela. Eu mesmo – oráculo do Senhor – serei para ela um muro de fogo que a cercará; serei no meio dela a sua glória. (Zc 2, 8-9). Comentava Augustin Lémann (convertido ilustre do judaísmo, 1836-1909): A metáfora indicava que a antiga Jerusalém não passava de figura dum reino totalmente diferente, uma vez que sal extensão não se poderia determinar de maneira humana. Cumprir-se-á na Igreja do Cristo, reino espiritual e universal22. –
O paradoxo do universalismo católico Se o universalismo messiânico judaico é intrinsecamente contraditório (logo, irrealizável), num primeiro olhar o universalismo católico também se avista paradoxal. Mas com a imensa vantagem de ser um paradoxo realizado, um paradoxo vivo. Constitui a Igreja verdadeira sociedade universal (católica = universal, em grego), dotada de sólida unidade de governo, doutrina e culto23. Os membros se lhe apegam mais que à pátria terrestre ou mesmo à vida. Entretanto, longe de dissolver as nacionalidades, a Igreja Católica dá origem a muitas. Um teórico nacionalista incréu tem por dever reconhecer que esta sociedade supranacional, longe de prejudicar às nações, é-lhes mui benéfica. Definiram-na mesmo como “a única internacional que vale” (Maurras).
É que a Igreja situa-se numa ordem diferente da das nações temporais. Seu desenvolvimento não poderia prejudicar o das demais – que ao contrário aproveitam de sua ação moralizadora. A quem objete que a Igreja ainda não reuniu toda a humanidade sob suas asas, há-de se dar duas respostas distintas. A primeira, nada impede antes do fim do mundo o triunfo universal da Santa Igreja, que cumpriria totalmente a profecia messiânica (sem todavia estabelecer o paraíso na terra, visto que os homens ainda serão pecadores e a Igreja ameaçada pela tibieza). Até os judeus juntar-se-ão à Igreja nesse momento único. Aquele que recusa tal esperança deve admitir que a Igreja já é uma sociedade universal, desenvolvida por entre todos os povos do mundo, que ela já cumpriu na realidade a profecia do povo único: “Contemplaram todas as nações da terra a salvação de nosso Deus” (Sl 97, 3; Is 52, 10) A Resposta Quádrupla do Cristo
Acerca das quatro tarefas que lhe acusam não haver cumprido, Nosso Senhor Jesus Cristo como que as respondeu por antecipação, em quatro sentenças:
1. Quanto à destruição do templo: Destruí vós este templo, e eu o reerguerei em três dias (Jo 2, 19).
2. Quanto à reunião definitiva dos judeus na terra de Israel: Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os enviados de Deus, quantas vezes quis ajuntar os teus filhos, como a galinha abriga a sua ninhada debaixo das asas, mas não o quiseste! Eis que vos ficará deserta a vossa casa. Digo-vos, porém, que não me vereis até que venha o dia em que digais: Bendito o que vem em nome do Senhor! (Lc 13, 35; ver também 19, 41-47).
3. Quanto à instauração da paz universal: Eu vos deixo a paz, dou-vos a minha paz; não vo-la dou como a dá o mundo (Jo 14, 17)
4. Enfim, quanto à reunião das diversas nações em um só povo: Ide pois a todas as nações, fazei discípulos e os batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo., Ensinai-as a observar tudo quanto vos ordenei. Eis que estarei convosco até o final do mundo (Conclusão do Evangelho segundo São Mateus.)
II – As qualificações do Messias Para o rabino Simmons Jesus não só se imiscuiu de agir como Messias, mas deixou de apresentar três qualidades indispensáveis a tal personagem – a de profeta, descendente de Davi e fiel observador da lei judaica. 1. Era Jesus Profeta? O rabino é categórico: Não somente não o era como não poderia ser: Não era Jesus profeta. Só há profecia em Israel quando esta terra está habitada em sua maioria pelo povo judeu. À época de Ezra, acerca do ano 300 da era comum – quando a maioria dos judeus recusou-se deixar Babilônia para retornar a Israel – encerraram-se as profecias com a morte dos derradeiros profetas – Ageu, Zacarias e Malaquias.Jesus apareceu no palco da história cerca de 350 anos depois do fim das profecias.
Em vez de definir ou descrever o que é profecia, comparando-a com a figura de Jesus, o rabino enuncia um princípio: a dispersão do povo judeu impedia a profecia. Mas donde vem tal princípio? Ele fora feito sob medida para tentar explicar a estranha ausência de profecias desde a vinda de Jesus Cristo (pois tal ausência constituía-se num argumento fortíssimo a favor de seu messianismo). Anda-se pois em círculos! Em realidade se ocorrera antes da vinda de Jesus uma como cessação das profecias (alguns séculos de silêncio, como para que melhor se preparasse o que haveria de vir24), reaparecem brusca e brilhantemente em João Batista, que apontava sem ambigüidades Jesus como o Messias.
É bastante considerar com honestidade a figura de São João Batista – a penitência no deserto, a prédica por sua vez rude e cheia de esperança, os discípulos encantados, as conversões operadas, a oposição defrontada, o testemunho corajoso diante de Herodes, e o martírio – para reconhecer que ele corporifica perfeitamente o tipo dos profetas do Antigo Testamento. Também Jesus cumprira à perfeição o tipo do profeta (aquele que fala em nome de Deus), notadamente na proclamação do “reino” messiânico. Ele é bem mais que profeta, mas deveriam reconhecê-lo ao menos como tal. Demais anunciara diante de testemunhas fatos bem precisos que os acontecimentos confirmaram de todo. Os Evangelhos difundiram e espalharam a profecia da tomada de Jerusalém mui antes de sua concretização. Ela levou os primeiros cristãos a fugir dessa cidade – seguindo os conselhos do próprio Cristo – quando viram os fatos preditos acontecerem.
Ninguém é profeta em sua terra! Jesus não foi reconhecido pelo seu povo.
Mas longe de prejudicar a missão, tal ingratidão acrescentara um traço de conformidade em acréscimo. Sublinhou Nosso Senhor com tristeza: Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Edificais sepulcros aos profetas, adornais os monumentos dos justos e dizeis: Se tivéssemos vivido no tempo de nossos pais, não teríamos manchado nossas mãos como eles no sangue dos profetas… Testemunhais assim contra vós mesmos que sois de fato os filhos dos assassinos dos profetas. Acabai, pois, de encher a medida de vossos pais! (Mt 23, 29-32)
2. Jesus Filho de Davi Ironiza o rabino: O Messias deve ser descendente, pelo lado paterno, do rei Davi (ver Gn 49, 10 e Is 11, 1). Ora, segundo a tese dos cristãos, Jesus nasceu duma mulher virgem, logo não tinha pai. Em conseqüência é impossível que pudesse satisfazer às exigências de filiação paternal remontando ao rei Davi! – Primeira resposta Em realidade ambos os textos citados pelo rabino (Gn 49, 10 e Is 11,
1) não mencionam filiação paternal. – Gênese 49, 10 limita-se a indicar a época da vinda do Messias: Não se apartará o cetro de Judá,nem o bastão de comando dentre seus pés,até que venha aquele a quem pertence por direito [o Messias],e a quem devem obediência os povos. Como fosse exatamente à época de Cristo que os descendentes de Judá perderam o poder em Israel, não nos vamos demorar por demais nesta profecia, ao contrário dos rabinos… – Já Is 11, 1 anuncia, é claro, que o Messias descenderá de Jessé (i. é, da família de Davi), mas não indica em lugar algum que será pelo lado paterno: Um renovo sairá do tronco de Jessé,e um rebento brotará de suas raízes.Sobre ele repousará o Espírito do Senhor […] O só fato de a Virgem descender de Davi basta a que Jesus seja descendente e também, com todo o rigor da palavra, um “rebento do tronco de Jessé”. Cumpriu-se pois a profecia. –
Segunda resposta Entretanto objetar-se-ia que a só descendência masculina permitiria a transmissão dos direitos hereditários. Cumpria ir além e notar que São José, apesar de não ser o pai biológico de Jesus Cristo, é o pai legal (oficial). Ora no direito judaico a paternidade adotiva sobrepõe-se à paternidade biológica. Listam os evangelistas não a genealogia da Santa Virgem, mas a de São José, pois esta é a genealogia oficial que interessa. Note-se ademais que São Mateus, que se dirige mais a propósito aos judeus palestinos, privilegia sistematicamente a genealogia legal (ao passo que São Lucas, que escreve para gregos, interessa-se antes pela paternidade real) 25.
O nascimento de Jesus em Belém sublinha também a origem davídica de Jesus. Porque Davi é de Belém, José e Maria tiveram de se dirigir a esta cidade, para o recenseamento. – Terceira resposta Segundo os profetas o Messias não deveria ser tão-somente o filho de Davi (i. é, seu descendente), mas também seu Senhor. O próprio Jesus citou o salmo em que declara Davi: Eis o oráculo do Senhor que se dirige a meu senhor [= o Messias]: Assenta-te à minha direita (Sl 109) Perguntava o Senhor aos fariseus: se Davi o chama de Senhor, como ele é seu filho? Não se compreende a expressão a não ser que, descendendo de Davi, o Messias o preceda de alguma forma; dito de outra forma, que ele não descenda de Davi por todos os ramos. Jesus é filho biológico de Davi por intermédio de sua mãe, filho legal por seu pai legal, mas ao mesmo tempo transcende tal origem, na medida em que é Filho de Deus. Não haveria melhor cumprimento das profecias.
3. Jesus e a Lei Judaica O terceiro argumento do rabino diz respeito à permanência da lei judaica (a Torá): O Messias levará o povo judeu à perfeita observância da Torá. Enuncia a Torá que todas as mitswoth (as prescrições da Lei) vigorarão para sempre, e quem queira mudar a Torá será quanto antes identificado como falso profeta (Dt 13, 1-4). Ora nosso autor acrescenta: Ao longo do Novo Testamento Jesus vai na contramão da Torá. É o desconhecimento da célebre sentença de Jesus: “Não acrediteis que vim para abolir a Lei ou os Profetas; não vim para abolir, mas para cumpri-la” (Mt 5, 17). Segundo o rabino só há uma alternativa: obedecer ou desobedecer. Quem não obedece à Lei é revoltado ou impostor. Mas isso é esquecer que tal alternativa só se impõe a quem esteja submetido à lei, não ao legislador.
Ora se é verdade que a atitude de Jesus em face da Lei judaica tem algo de surpreendente, jamais ele aparece como um revoltado. Ao contrário nasce a surpresa do contraste entre a humildade com que se prende amiúde à Escritura26 e, além disso, e a autoridade com que legisla (“Vós aprendestes dos antigos… mas eu vos digo…” Mt 5, 21; 5, 27 etc.). Legislando Jesus se mostra superior à lei de Moisés. Sob certa perspectiva ele obedece à lei, pois que a ela regulava o modo por que o Messias, o legislador definitivo, devia aperfeiçoá-la. A lei nova não abole a lei antiga, mas a supera e transfigura, cumprindo o que nela estava só em figura. Podemos compará-la à borboleta: ela não mata – nem caça – a lagarta, mas é a mesma lagarta na etapa última e perfeita da existência.
Jesus conduziu os judeus (pelo menos os que quiseram-no seguir) exatamente à “perfeita observância da Torá”: a caridade é o cumprimento da lei, ensina São Paulo (Rm 13, 10). E São Paulo, mui zeloso das tradições de seus pais, descobre que a lei é um meio, não um absoluto27. Abrãao recebeu as promessas pela fé – e não pela Lei. Como viesse depois, ela não poderia ser o fundamento da salvação, nem aspirar à última palavra em todas as prescrições materiais (Rm 4 e Ga 3).
Destinado a proteger a fé, não dá por si a vida da graça; ela é boa mas, pesada; é ocasião de muitas transgressões, mas por isso mesmo um verdadeiro fardo (Rm 7). Vindo para transfigurá-la age Jesus como verdadeiro libertador. Os profetas prepararam a transfiguração [da lei]28. Quando Jeremias lançava em rosto de Israel serem eles “incircuncisos de coração” (Jr 9, 26) não era a clara indicação de que a circuncisão corporal não era absoluta, mas apenas sinal exterior da necessária purificação do coração? Não dirá outra coisa São Paulo ao afirmar que “não é verdadeiro judeu o que o é exteriormente, nem verdadeira circuncisão a que aparece na carne” (Ro 2, 28). Como pe. Lémann notava:
Tornado católico o israelita não muda de religião, mas aperfeiçoa a sua, completa-a, coroa-a. O israelita que se torna católico é, por excelência, o homem religioso que desabrocha para a plenitude, como do caule desabrocha a flor29. Aos que perguntavam porque havia renunciado à sinagoga Eugênio Zolli (antigo grão-rabino de Roma) respondia: Mas eu não a renunciei. O cristianismo é a perfeição da sinagoga. A sinagoga era a promessa e o cristianismo o cumprimento da promessa30.
O judaísmo atual assemelha-se à lagarta que, tendo ouvido confidências acerca do vindouro estado alado, recusasse obstinadamente a entrar no casulo. Foi quando lagarta que lhe fizeram as promessas, afirma ela, e não à insolente borboleta, que lhe busca retirar a herança. Moverá céus e terras em favor da “lagarta”. Claro que ela quer voar um dia, esperando com fervor a vinda do Messias que lhe dará asas, mas as quer receber como lagarta, sem perder as patas de lagarta, os costumes de lagarta, a lei de lagarta. E isso já dura 2000 anos.
III – São mal traduzidos os textos proféticos?
Aos olhos do rabino Simmons Jesus não somente não cumpriu as profecias, mas teve grande dificuldade em cumprir as que lhe não eram de dever! Para isso o rabino ataca três profecias célebres, que não passariam de textos mal traduzidos: 1. O nascimento virginal, profecia de Isaias (7, 14) 2. A crucifixão, descrição de Davi (Sl 21); 3. O homem das dores, pregão de Isaias (cap. 53). Vejamos isso de mais perto. 1. O nascimento virginal, profecia de Isaias (7, 14) Afirma o rabino Simmons: A idéia cristã do nascimento virginal teve origem em Isaias 7, 14, em que se diz que uma ‘alma’ engravidou. A palavra hebraica ‘alma’ sempre significou “jovem mulher”, mas os teólogos cristãos, vários séculos depois, traduziram-no por “virgem”.
Simplesmente esquece o rabino que não foram os cristãos que traduziram a Bíblia em grego, mas os próprios judeus, muito antes do nascimento de Jesus Cristo (versão grega, dita a dos Setenta). Ora nesta versão a palavra hebraica ‘almah’ está traduzida não por “a jovem mulher”, mas por “jovem virgem”, é esse termo – parthénos – que São Lucas empregará para designar a Virgem Maria na narração da anunciação31). Somente no séc. II de nossa era, após a vinda de Jesus Cristo, que os autores judeus empenharam-se a dar nova tradução, para confrontá-la ao cristianismo.
Teodósio de Éfeso, Áquila do Ponto e Símaco traduziram então ‘almah’ como a jovem mulher. Se se dispõe a examinar mais de perto o vocábulo hebreu (‘almah), só é possível conhecer-lhe o sentido exato examinando seus diversos usos na Bíblia. Ora a palavra só aparece na Escritura Santa umas quantas vezes. Ela designa meninas adolescentes que, segundo o contexto, são virgens, seja em verdade ou em aparência. Só uma vez designa uma jovem que possivelmente é virgem (não se consegue saber pelo contexto) 32.
Como corolário disso temos:
1. Nada se opõe a que este termo ‘almah’ designe uma jovem virgem (em oposição aos termos na’arâh, que diz respeito a jovens adolescentes sem mais precisar, e betûlah, que diz respeito à uma virgem, sem precisar a idade);
2. É forte a probabilidade para que seja esse o sentido da palavra. Essa forte probabilidade torna-se certeza ao se constatar que a traduziram a palavra como “virgem” na versão grega, a dos Setenta. Enfim acrescente-se que um sábio judeu do séc. XIX, o rabino David Drach (1791-1865), demonstrou com riqueza de detalhes como as antigas tradições judaicas confirmam a interpretação cristã desta passagem de Isaias. É o tema da Troisième Lettre d’un rabbin converti aux Israélites ses frères (Roma, 1833) 33. Definitivamente a realidade vai de encontro às afirmações do rabino Simmons. Não são os “teólogos cristãos [que], muitos séculos depois, traduziram-na por “virgem”, mas sim os tradutores judeus que, mais de um século após a vinda do Cristo, rejeitaram a tradução até então corrente, para introduzir o termo jovem mulher. Continua atual o desafio que São Jerônimo lançou aos judeus de seu tempo: Demonstrem os judeus uma só passagem em que ‘almah’ refira-se tão somente a uma jovem adolescente e não a uma virgem, e então reconheceremos que a palavra de Isaias deve compreender-se não por virgem casta, mas jovem mulher já casada (Contra Jovinianum, I, 32; PL 23, 254).
2. A Crucifixão, profecia de Davi (Salmo 21) Fala-se aqui salmo 21 (22 no saltério hebreu). Davi aqui entoa o pedido de socorro lançado a Deus por um homem a quem seus inimigos supliciam e, depois, concluindo, a ação de graças quando Deus lhe dá o livramento. Particularmente anunciam os versículos 15-19 a paixão do Cristo: […] Derramo-me como água,todos os meus ossos se desconjuntam;meu coração tornou-se como cera,e derrete-se nas minhas entranhas.Minha garganta está seca qual barro cozido,pega-se no paladar a minha língua:vós me reduzistes ao pó da morte.Sim, rodeia-me uma malta de cães,cerca-me um bando de malfeitores.Traspassaram minhas mãos e meus pés:poderia contar todos os meus ossos.Eles me olham e me observam com alegria,repartem entre si as minhas vestes,e lançam sorte sobre a minha túnica.
Mas o rabino contesta a tradução do versículo “Traspassaram minhas mãos e meus pés”: Está escrito nos Salmos (22, 17): “Pois que os cães me assediam, a súcia dos perversos está acerca de mim; como o leão (eles fustigam) minhas mãos e meus pés.” O termo hebreu KEARI (“como o leão”) é similar em gramática à palavra “rasgo”. Desta forma interpretou o cristianismo o versículo, como contendo alusão à crucifixão: “Traspassaram minhas mãos e meus pés.”
O astuto rabino se esquece novamente de precisar que a tradução “Traspassaram minhas mãos e meus pés” não é de invenção cristã. Era já assim na tradução grega dos Setenta muito antes do nascimento do Cristo. Ninguém a contestou à época, quando se publicava por toda a parte essa versão dos Setenta (era praticamente a tradução grega oficial da Bíblia, em uma época em que o grego era a língua dominante). Somente após o nascimento e a difusão do cristianismo que os judeus provaram da necessidade de outra tradução. Prolatando o texto de modo diverso (pois em hebreu, só as consoantes se indicam, e um mesmo texto pode ter várias leituras possíveis) traduziram-no os judeus Áquila e Símaco por “Ataram minhas mãos e meus pés”, o que tinha a vantagem de enfraquecer a remissão à crucifixão, mas guardando o inconveniente de ainda se conseguir aplicá-lo ao Cristo.
Na Idade Média os massoretas (sábios judeus que se dedicaram a pôr sobre o papel a vocalização dos textos) preferiram entender “Como o leão minhas mãos e meus pés”. Não fazia muito sentido o texto, mas pretendiam que se subentendesse o verbo “fustigam”, dando assim “Como o leão (eles fustigam) minhas mãos e meus pés”. Eis, como vimos, a solução que adotou o rabino Simmons. Ainda que logicamente possível, tal leitura apresenta três erros grosseiros: – Ela requer que se leia como yod a última consoante da palavra (existe uma variante dessa letra nos manuscritos hebreus34); – Resulta em um texto obscuro (ao qual há-de se acrescentar uma palavra de modo a lhe dar um sentido inteligível); –
Enfim, como vimos, não corresponde ao modo como se lia amiúde antes da vinda do Cristo.
Quanto à versão “Traspassaram minhas mãos e meus pés”: – Justifica-se qual seja a consoante final35; – Apresenta sentido perfeito e claro; – Corresponde à leitura tradicional dos judeus do Antigo Testamento (como prova a tradução da Septuaginta). Deve admitir o observador imparcial que a verossimilhança nesta questão não pende para o lado do rabino Simmons.
3. O homem das dores, anúncio de Isaias (cap. 53) O capítulo 53 de Isaias é uma das culminâncias do Antigo Testamento, não apenas por causa da força emotiva com que anuncia a paixão do Messias, mas sobretudo devido à explanação doutrinal dada. Antes de discutir a lição, releia-se o capítulo: Quem poderia acreditar nisso que ouvimos? A quem foi revelado o braço do Senhor? Cresceu diante dele como um pobre rebento enraizado numa terra árida; não tinha graça nem beleza para atrair nossos olhares, e seu aspecto não podia seduzir-nos.
Era desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e não fazíamos caso dele. Em verdade, ele tomou sobre si nossas enfermidades, e carregou os nossos sofrimentos: e nós o reputávamos como um castigado, ferido por Deus e humilhado. Mas ele foi castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniqüidades; o castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, seguíamos cada qual nosso caminho; o Senhor fazia recair sobre ele o castigo das faltas de todos nós. Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador. (Ele não abriu a boca.) Por um iníquo julgamento foi arrebatado.
Quem pensou em defender sua causa, quando foi suprimido da terra dos vivos, morto pelo pecado de meu povo? Foi-lhe dada sepultura ao lado de facínoras e ao morrer achava-se entre malfeitores, se bem que não haja cometido injustiça alguma, e em sua boca nunca tenha havido mentira. Mas aprouve ao Senhor esmagá-lo pelo sofrimento; se ele oferecer sua vida em sacrifício expiatório, terá uma posteridade duradoura, prolongará seus dias, e a vontade do Senhor será por ele realizada. Após suportar em sua pessoa os tormentos, alegrar-se-á de conhecê-lo até o enlevo. O Justo, meu Servo, justificará muitos homens, e tomará sobre si suas iniqüidades.
Eis por que lhe darei parte com os grandes, e ele dividirá a presa com os poderosos: porque ele próprio deu sua vida, e deixou-se colocar entre os criminosos, tomando sobre si os pecados de muitos homens, e intercedendo pelos culpados. [Is 53, 1-12] O rabino Simmons contesta, é claro, e nega que se trate de uma profecia messiânica: O cristianismo considera que o capítulo 53 de Isaias acerca do “homem das dores” se refere a Jesus. Em realidade constitui o capítulo 53 a seqüência do capítulo 52, o qual descreve o exílio e a redenção do povo judeu. As profecias são escritas no singular porque os Judeus (“Israel”) são considerados como unidade.
A Torá formiga de exemplos em que designam no singular a nação judaica.
Pela terceira vez o rabino Simmons opõe-se à interpretação cristã, e mais ainda, sem o dizer, à de muitos judeus. Muitos deveras hão admitido que esta profecia anunciava o Messias, ainda que depois a submetessem à uma exegese mais que acrobática para eliminar os aspectos que os desagradavam. Caso significativo é o do targum36 de Jônatas, que o padre Lagrange oferece como “exemplo típico e até divertido dos disparates que podem acarretar o cuidado de permanecer fiel às palavras de um texto, retirando-se tanto quanto possível de seu espírito37”. O capítulo 53 inteiro é interpretado deste modo. Quando diz Isaias que Deus chama para si a iniqüidade do mundo, interpreta-o Jônatas como o Templo (mas o texto não diz palavra!): isso significa que o Templo foi profanado devido aos pecados de Israel. Quando diz o texto que o servo do Senhor não abriu a boca, entende Jônatas: “O seu pedido foi atendido antes que abrisse a boca para rezar”.
Em seguida, em vez de tratarem-no como um cordeiro em direção ao matadouro, ele é que conduz os povos à carnificina! E por aí vai. Jônatas interpreta sempre às avessas todas as passagens que indicam o sofrimento do Messias. Mas, conforme a conclusão de pe. Lagrange: Os que se defrontem com o texto de Isaias possuem um método mais simples que o de Jônatas para fugirem à sua evidência: não por disparates nos detalhes, antes um disparate generalizado que só deixasse ver no servo do Senhor o grupo de justos ou o povo de Israel como um todo. Aos antigos rabinos era mais cara a primeira maneira; desde Raschi, prevaleceu a segunda […]38. Raschi é o nome do rabino de Troyes (1040-1105) que impusera a idéia de que Isaias 53 aplicava-se não ao Cristo, mas ao povo judeu. Oferecera por argumento o fato de a expressão “servo do Senhor” designar o povo de Israel em outras passagens de Isaias.
Mas Isaias designa sem enganos que o “servo do Senhor” descrito nestas passagens é o Servo-Israel, o qual é pecador empedernido (Is 43, 24-28 etc.), punido com as próprias iniqüidades (Is 43, 27-28 etc.), e cego às obras de Deus (Is 42, 19-20). Ao contrário, Isaias 53 apresenta o “homem das dores” como isento de toda culpa, obediente à estrita vontade Deus, levando consigo os pecados alheios. Não é possível com isso designar o povo de Israel, pois que aquele homem foi esmagado por causa dos pecados do povo. Tudo estava claro o bastante para que, durante séculos, ninguém tivesse dúvidas: somente após a vinda de Jesus Cristo, remeteram – contra Jesus – o texto de Isaias 53 ao povo judeu. Hoje em dia querem ver nisso a predição do que os judeus apelidaram de “Shoah”. Todavia, em plena Segunda Guerra Mundial, o grão-rabino de Roma, cuidadoso em proteger seu pequeno rebanho de judeus, cada vez que lia o capítulo de Isaias referia-se sem cessar ao Messias, e não a seu povo. Durante sua infância na Ucrânia, avistara ele de uma feita na casa de seu colega um crucifixo, imagem que não lhe saía da cabeça cada vez que lia o cântico do homem das dores. Convertido após ao cristianismo, Israel Zolli (eis seu nome) contara como o texto de Isaias ajudara-o na sua trilha até ao Cristo Jesus39.
Conclusão O rabino Simmons invoca outros argumentos contra o cristianismo, mas sem ligações com as profecias, e de tal forma caricaturais que não valem o esforço de uma refutação detalha. Afirma que “a idéia católica da Trindade transforma Deus em três partes distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo”, o que parece indicar que nunca se dera ao trabalho de abrir um catecismo, nem pelo menos o Símbolo de Santo Atanásio.
Parece também que não entendeu mais o significado do mistério da encarnação, visto que ele acha razoável contradizê-lo ao afirmar que Deus é incorporal, infinito, para além do espaço, e que “Deus não é mortal” (Nm 23, 19). Confunde também catolicismo e maniqueísmo, afirmando que “a doutrina católica trata amiúde o mundo físico como um mal a se evitar.”
Por outro lado, seria interessante recensear as profecias messiânicas que o rabino Simmons cala em seu estudo (por exemplo, nada diz acerca da época em que o Messias deveria nascer, não obstante se predissesse de muitas formas distintas40). Mas um estudo como esse nos levaria longe demais. Parece-nos que só o exame das profecias que o rabino invocou contra Jesus Cristo basta para fundamentar que Jesus Cristo cumprira as profecias, e que por isso é o Messias enviado de Deus.
Que o Senhor se digne a precipitar o dia em que seu povo finalmente o reconhecerá!
Tradução: Permanência. Originalmente publicado em Le Sel de la Terre