Estudo brasileiro sobre hidroxicloroquina: mais do mesmo?
Especialistas apontam as limitações metodológicas da pesquisa, que não foi conclusiva sobre a eficácia do medicamento no combate à Covid-19
Aguardado por meses, alardeado na grande imprensa por como “o primeiro grande estudo brasileiro a respeito dos efeitos da hidroxicloroquina para pacientes de Covid-19”, o estudo Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate Covid-19 foi publicado pelo The New England Journal of Medicine no dia 23 de julho. Promovido pela chamada Coalizão Covid-19 Brasil, o trabalho é assinado por 35 pesquisadores que atuam em hospitais, centros de pesquisa a universidades brasileiros.
Os jornais tradicionais correram para apresentar a versão de que essa pesquisa comprova a ineficácia da hidroxicloroquina.
Especialistas do movimento Docentes pela Liberdade (DPL) que atuam na área médica se debruçaram sobre o trabalho e perceberam que o estudo, na verdade, é inconclusivo. E apresenta uma série de limitações metodológicas.
“Este é um estudo com alto risco de erro sistemático”, analisa, por exemplo, Regis Andriolo, biólogo com mestrado e doutorado em Medicina Interna e Terapêutica e Saúde Baseada em Evidências pela Universidade Federal de São Paulo, com pós-doutorado em saúde coletiva pela mesma instituição.
“A pesquisa incorre em risco de conduta, porque o teste não foi duplo cego, e de análise, porque não foram referidos avaliadores independentes”.
Mais grave ainda, disse ele, é a pesquisa ter identificado pacientes usuários de enzima conversora de angiotensina, aplicada para casos de insuficiência cardíaca.
“Muitos dos pacientes que usaram hidroxicloroquina tinham problemas cardíacos, quando se sabe que esse medicamento apresenta riscos para este perfil de pacientes”, explica Regis Andriolo.
Mesmo com o fracasso de um estudo imprudente em Manaus, que precisou ser interrompido em abril por aplicar dosagens elevadas de hidroxicloroquina e cloroquina, a pesquisa divulgada em julho também incorreu nesse procedimento: aplicou dosagens de 800 mg diários, ao longo de 7 dias, para os pacientes, o que representa um risco desnecessário para os envolvidos. O tempo mediano decorrido do início dos sintomas até a randomização foi de 7 dias, com pacientes iniciando o tratamento após 14 dias a partir do início dos sintomas.
Os próprios autores reconheceram as limitações do estudo, e não descartaram a eficácia da hidroxicloroquina.
“A análise não pode descartar um benefício substancial, nem um dano substancial do medicamento em questão”, afirma a pesquisa.
“Mistura de conceitos”
Hélio Angotti Neto, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde, médico pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e doutor em ciências médicas pela Universidade de São Paulo (USP), se manifestou publicamente sobre a pesquisa, durante uma entrevista coletiva realizada pelo ministério no dia 24 (https://www.youtube.com/watch?v=yerS12c71WY&feature=youtu.be).
“Eu li a pesquisa, ela é muito interessante. Mas o título, que afirma que o medicamento foi aplicado a pacientes leves a moderados, não condiz com o conteúdo do estudo. Alguns pacientes pesquisados, no primeiro dia de inclusão do trabalho, estavam recebendo até 4 litros de oxigênio. O que o trabalho chama de caso leve a moderado, para o Ministério da Saúde é caso grave”.
Além disso, afirmou ele, “o estudo incluiu pessoas com até 14 dias de manifestação dos sintomas, quando o Ministério considera que a orientação para casos precoces vai do primeiro ao quinto dia”. Para ele, “houve uma mistura de conceitos”.
Outro pesquisador da área médica, com vasta produção acadêmica e experiência ampla, conheceu os bastidores do estudo. Ele conversou com a reportagem – por motivos de segurança, seu nome não será identificado.
“No início, essa pesquisa iria utilizar pacientes ambulatoriais, de menor gravidade. Posteriormente, esse público foi descartado, e optou-se por avaliar apenas pacientes de maior gravidade, já hospitalizados, mesmo já se sabendo à época do início do estudo que estes pacientes não se beneficiariam”, ele relatou.
Um dos pontos de debate sobre a hidroxicloroquina é precisamente o momento ideal para começar e a dose a utilizá-la no tratamento. O especialista denuncia que, num primeiro momento, o medicamento seria aplicado para o estágio inicial da doença. Essa estratégia foi alterada posteriormente.
“O que me causou estranheza”, prossegue o especialista, de reconhecida experiência na área, “foi o fato de que a medicação foi adotada em hospitalizados, mesmo à luz do conhecimento de que a medicação não traria resultados em pacientes hospitalizados, uma vez que a hospitalização significa a evolução para o segundo estágio da COVID-19, quando a participação viral torna-se secundária e a tempestade inflamatória assume o papel principal”.
Além disso, diz ele “estudos prévios já haviam demonstrado a ausência de eficácia nesta população em estágio mais avançado da doença. Todos estes dados já eram de amplo conhecimento à época do início do estudo”.
Ainda assim, prossegue o especialista, “persistiu-se com a condução do estudo nas condições em que foi publicado, enquanto que o único momento em que a hidroxicloroquina poderia demonstrar eficácia, que seria no início da COVID-19, enquanto o vírus ainda estaria se replicando”.
Pesquisadores do estudo
Os 35 pesquisadores do estudo são: Alexandre B. Cavalcanti, Fernando G. Zampieri, Regis G. Rosa, Luciano C.P. Azevedo, Viviane C. Veiga, Alvaro Avezum, Lucas P. Damiani, Aline Marcadenti, Letícia Kawano-Dourado, Thiago Lisboa, Debora L. M. Junqueira, Pedro G.M. de Barros e Silva, Lucas Tramujas, Erlon O. Abreu-Silva, Ligia N. Laranjeira, Aline T. Soares, Leandro S. Echenique, Adriano J. Pereira, Flávio G.R. Freitas, Otávio C.E. Gebara, Vicente C.S. Dantas, Remo H.M. Furtado, Eveline P. Milan, Nicole A. Golin, Fábio F. Cardoso, Israel S. Maia, Conrado R. Hoffmann Filho, Adrian P.M. Kormann, Roberto B. Amazonas, Monalisa F. Bocchi de Oliveira, Ary Serpa-Neto, Maicon Falavigna, Renato D. Lopes, Flávia R. Machado, e Otavio Berwanger.Financiadores e apoiadores
O estudo recebeu o apoio de instituições participantes da Coalizão Covid-19 Brasil e da EMS Pharma, que forneceu financiamento parcial, medicamentos experimentais e apoio logístico.
Segundo informações publicadas no estudo, os Drs. Cavalcanti e Zampieri contribuíram igualmente para a publicação do artigo, em 23 de julho de 2020, no NEJM.org.
Afiliações de autores
Os autores do estudo são afiliados ao seguintes hospitais e institutos: Hospital do Coração HCor, Pesquisa Brasileira em Rede de Terapia Intensiva, Instituto de Pesquisa e Educação do Hospital Sírio Libanês, Beneficência Portuguesa de São Paulo, Centro Internacional de Pesquisa, Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Instituto Brasileiro de Pesquisa Clínica, Hospital São Camilo, Hospital Moriah, Organização de Pesquisa Acadêmica do Hospital Israelita Albert Einstein, Hospital Israelita Albert Einstein, Hospital Sepaco e Hospital Santa Paula, em São Paulo, Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, Hospital Giselda Trigueiro, em Natal, Instituto Tacchini de Pesquisa em Saúde, Hospital Tacchini, Bento Gonçalves, Hospital Bruno Born, Lajeado, Hospital Baia Sul, em Florianópolis, Hospital Regional Hans Dieter Schmidt, em Joinville; Angiocor Blumenau, em Blumenau e EMS Pharma, em Hortolândia; e Duke Clinical Research Institute, Duke University Medical Center, em Durham, Carolina do Norte, nos EUA.
[Em tempo: O artigo faz parte de um esforço do movimento Docentes pela Liberdade (DPL) em trazer pensadores competentes e capazes de agregar análises relevantes para o cenário nacional. As opiniões expressas na análise não reproduzem, necessariamente, as posições do DPL ou Conexão Política.]
fonte conexaopolitica.com.br