Nota dos editores: A análise contém spoilers e descrições de algumas partes do filme. O texto foi publicado originalmente no Instagram de Leandro Karnal (@leandro_karnal) em 4 partes e republicado aqui com autorização do autor.
O filme espanhol “O Poço”(2019) está disponível na Netflix ou seria Coronavírus.
Resumo sem spoiler: em um mundo distópico, existe uma instituição penal/educativa chamada de O Poço. Em cada nível existem duas pessoas que são alimentadas por uma plataforma/mesa que desce com comida. Os níveis superiores podem comer bem e, à medida que a mesa desce, as celas inferiores recebem pouco ou nada.
O filme começa com a personagem Goreng (Iván Massagué) despertando no nível 48 junto a um companheiro de cela chamado Trimagasi (Zorion Eguileor) que explica ao novato como funciona o sistema.Pontos de análiseO filme trata de uma metáfora óbvia: a sociedade é desigual e os de cima não se preocupam com os de baixo. Leitura de um sistema no qual, como diz Trimagasi, é “comer ou ser comido”.
Há alimento para todos, porém o egoísmo produz fome. O tema parece retirado da metáfora do mexicano Mariano Azuela González: Los de Abajo.
Existe um nível psicológico: submeter personagens a situações limite para discutir a condição humana é um recurso clássico. Ocorre com O Senhor das Moscas (romance de William Golding) ou nas peças de Samuel Beckett ( a crítica internacional apontou um traço de Esperando Godot, mas eu indicaria, também, a influência de Fim de Partida).
O choque de mundos de Goreng e Trimagasi é o atrito entre a visão idealista e realista.
A palavra-chave de Trimagasi é “óbvio” porque, para o prisioneiro mais velho, tudo está inserido em regras claras, naturais e que exigem adaptação para sobreviver.
Goreng questiona tudo do sistema do poço. O símbolo das duas atitudes está na escolha do que levar para o poço: o realista traz uma faca e o idealista um livro (D. Quixote) . Pegando o tema de Cervantes, teríamos D. Quixote e Sancho Pança.
Que preço estaríamos dispostos a pagar pelo que fizemos ou por um diploma? Sobreviver é só o que importa?
Quanto mais fundo se desce, maior o sofrimento.
A ideia está no Inferno da Divina Comédia. Há uma referência religiosa da culpa. No terceiro círculo do Inferno ( e na sexta cornija do Purgatório) estão punidos os gulosos. O mais importante é tomar consciência do próprio pecado.
Trimagasi matou alguém e optou por aquela pena no poço. Goreng busca certificados, uma espécie de esforço de meritocracia e de competitividade. Ao contrário de Dante, existe mobilidade no Inferno e isso permite que opressores sejam oprimidos.
A experiência da dor da fome pouco ou nada ensina aos apenados.Existe um mundo de planejamento, tecnocrático e muito elaborado. Na entrevista, perguntam sobre alergias e cuidados. Na cozinha luxuosa, a apresentação é tudo e a qualidade e higiene é rigorosa. Na prática, todo o planejamento (estatal?) resulta inútil e em desastre.
Quem organiza a seleção e a alimentação não possui visão do todo.
A mesa volta sempre sem nada e isso pode ser lido na cozinha como êxito da culinária. Se a panacota voltar intacta, isso pode ser uma mensagem de que algo não funciona. A funcionária que trabalhou 25 anos na seleção também diz nada saber.
Existe uma síndrome de Eichmann e do mal banal. Quem pensa o modelo não sabe como ele funciona e quem sofre o planejamento não tem acesso aos que elaboram tudo. Todos cumprem ordens.
O filme é anterior ao coronavírus mas serve perfeitamente ao momento. Tenho de me salvar, comprar o máximo possível, salvar a mim. Pouco ou nada me importam os outros. Assim, como no filme, a teoria de Hobbes supera a de Rousseau: a natureza humana é má e egoísta.
Uma criança seria a esperança?
Um bom selvagem?
Existiria de verdade ?
Só a ameaça educa (“vou defecar na sua comida”) e só funciona para baixo.
Não existe bom-senso, apenas ameaça.
É o mundo hobbesiano que precisa de Estado forte. Em plena epidemia, é o Estado (democrático, por sinal) que está ditando regras de controle cada vez mais amplas. Para salvar a vida, abrimos mão da liberdade e da própria humanidade. Só queremos viver. Todo o resto é secundário. O sucesso do Poço não é acidental.
A principal angústia d’O Poço é querer enquadrar a obra em uma proposta de esperança. O filme é realista, politicamente maquiavélico (no sentido de não mostrar o mundo como deveria ser, todavia como é). Chamamos isto de Realpolitik em oposição a um mundo idealizado. Vejamos exemplos:
A ideia de que existe um sentimento mais forte como a maternidade que se possa se impor à barbárie é falsa. A mãe, ao procurar a filha, mata, trucida e pratica canibalismo. É uma egoísta para duas pessoas. Os outros são egoístas individuais. O amor materno não redime. Defender a filha é defender apenas a si e ao seu narciso.
Os ideais religiosos de missão recebem, literalmente, m… na cabeça.
A morte de Deus (Nietzsche) vem acompanhada da morte da potência humana fora das voltas do poder (Foucault). Como em Machado de Assis, desponta um niilismo realista, um esvaziamento de sistemas idealistas ou de uma metafísica. Lembram a frase de Shakespeare sobre a vida (ainda que Shakespeare não seja um niilista) : é uma história contada por idiotas, cheia de som e fúria , que nada significa.
A perturbação com o final (estariam mortos?, são fantasmas?, aquilo ocorreu de fato?) andam de mãos dadas com o próprio sentido da criança: é uma mensagem, porém a mensagem não redime e não significa nada. A civilização é uma casca frágil, o canibalismo surge em uma semana, somos educados e com fé só se estivermos alimentados. Somos um corpo com necessidades e que, para escapar à dor, criamos metafísica. É isso que incomoda no filme.
Quando as pessoas dizem, quase em coro: “não entendi o final” , reclamam, no fundo, da ausência de uma cena que produza a redenção, o sentido e a esperança.
A pergunta curiosa seria não como a maldade humana fica evidenciada no poço, todavia como se permite a constituição desse panóptico (expressão analisada por Foucault a partir da ideia de Benthan) que vira apenas uma gaiola de hamster, um experimento behaviorista (do comportamento), uma situação simples de indução dos ratos ao choque.
No panóptico introduzimos o delírio do controle da vida alheia.
Como não controlamos sequer a nossa, esse delírio é muito sedutor, um opiáceo, vivido agora pelas classes médias nas sacadas da quarentena.
Na verdade, toda a internet é um sistema de panóptico que trouxe a possibilidade de ampliar nosso ancestral desejo de examinar outras existências. A sociedade distópica do poço não ficaria melhor se todos fossem alimentados ou o próprio sistema destruído.
As mentes que elaboraram o poço continuariam lá. O que substitui a tirania de Nicolau II é a ditadura de Lênin e de Stálin. O que vem depois da Bastilha é a ditadura de Napoleão e a sociedade burguesa e excludente da França. O poço foi apenas uma maneira de exercer as voltas do poder e o sadismo do controle.
Como a internet ou a quarentena, são expressões conjunturais e históricas de coisas estruturais. São como as personagens de Sartre (Entre quatro paredes/Huis Clos) supondo sempre que o inferno está na incapacidade alheia de captar a verdade, a minha, claro.
Em período de crise, adoraríamos uma mensagem de esperança e de redenção. O Poço recusa nossa vontade e piora a percepção do mundo.
Quem suportaria olhar para a Medusa e sobreviver?
Quem consegue olhar para seu poço?”